Governança do Futuro para a Administração Pública de Hoje
Nesse artigo de opinião, o autor sustenta que a Governança do Futuro deve ressignificar os pilares clássicos de liderança, estratégia e controle, incorporando dois novos fundamentos: a Inteligência Artificial, como motor de inovação e eficiência, e o Valor, entendido como a concretização de direitos fundamentais. Assim, propõe superar a mera gestão burocrática e transformar a Administração Pública em instrumento efetivo de entrega de dignidade e resultados ao cidadão.
INOVAÇÃOCONTRATAÇÕES SOCIAISGOVERNANÇA
Jandeson da Costa Barbosa
9/6/20256 min read
Governança do Futuro para a Administração Pública de Hoje
Jandeson da Costa Barbosa[1]
Permita-me começar esta conversa escrita seguindo um conselho precioso do ministro Carlos Ayres Brito, grande nordestino ex-presidente do Supremo, que tive a sorte de ter como professor e tutor: “quando você quer entender um conceito, você tem que voltar para a essência da palavra”. Então, antes de falarmos sobre governança do futuro, precisamos entender o que esse vocábulo significa, de fato.
Governança é uma palavra que virou substantivo, mas tem origem em um verbo: “governar”. E aqui está o ponto fundamental que muita gente não percebe. Substantivo é coisa parada – um copo, um microfone, uma mesa. Verbo denota ação, movimento, transformação. Quando substantivamos a palavra “governar”, criamos o termo “governança”, mas muitas vezes perdemos a essência dinâmica do que significa realmente governar.
Como nos ensina a professora Marilena Chaui, existe uma diferença fundamental entre governante e gestor. A autora trata especificamente da universidade pública, mas o paralelo pode ser traçado em relação a toda a Administração Pública. Como se depreende de seus escritos e palestras, o gestor tem como compromisso entregar um resultado numérico, um produto. O governante precisa se preocupar com algo muito maior, que resumimos como: concretizar direitos fundamentais do cidadão.[2] Essa diferença não é apenas conceitual, ela muda completamente a forma como tomamos decisões na Administração Pública. É nessa esteira que a festejada filósofa traça a distinção entre “instituição” e “organização”. Vejamos:
“Uma organização difere de uma instituição por definir-se por uma prática social determinada de acordo com sua instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios (administrativos) particulares para obtenção de um objetivo particular. Não está referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações definidas como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. Por ser uma administração, é regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. [...]
Isso significa que a instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa, enquanto a organização tem apenas a si mesma como referência, num processo de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares”[3]
Não é incomum, infelizmente, reduzir-se o ato de governar à mera gestão. É aquela visão de que basta fazer as coisas funcionarem, cumprir protocolos, seguir processos burocratizados. Nesse modelo, o gestor público se preocupa apenas em “não dar problema”, em cumprir a letra fria das normas, em fazer o básico sem questionar se aquilo realmente está entregando valor para o cidadão.
Eu sempre digo: a Administração Pública existe para concretizar direitos fundamentais do cidadão. Quando reduzimos governança à mera gestão, perdemos essa perspectiva. Ficamos presos em processos que consomem recursos humanos desnecessariamente. Por exemplo, quantas prefeituras têm 40 servidores fazendo licitação porque mantêm processos burocratizados que poderiam ser feitos por 15? Essas 25 pessoas poderiam estar no posto de saúde, na escola, executando políticas públicas para concretizar direitos fundamentais.
E é necessário termos atenção, pois esse debate costuma nos colocar em um falso dilema: de um lado, a pressão por eficiência apenas para “custar menos”; do outro, a acomodação de quem acha que o serviço público não precisa ter resultado. São dois lados de uma moeda perversa que é a falta de verdadeira governança.
O debate acerca da governança, bem desenvolvido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) – especialmente com a inestimável contribuição do ministro Augusto Nardes – organiza-se em três grandes pilares: liderança, estratégia e controle. Esses pilares são formas didáticas de organizar a potência do ato de governar.
Liderança envolve a capacidade de inspirar, mobilizar pessoas, criar um ambiente propício ao desenvolvimento e à inovação. É sobre gestão de pessoas, mas vai além: é sobre criar uma cultura organizacional voltada para o bem comum. Estratégia, por sua vez, diz respeito à formatação de processos de trabalho, ao planejamento de longo prazo, à definição de prioridades e à alocação inteligente de recursos. É pensar o futuro e construir os caminhos para chegar lá. Já o Controle abrange não apenas o compliance e o cumprimento de normas, mas também o estabelecimento de metas, o monitoramento de resultados e a capacidade de fazer correções de rota quando necessário.
Esses três pilares da governança são sólidos, importantes e necessários. A eles, este autor propõe que se unam outros dois pilares, a formar uma construção própria para o seu tempo, inspirada no futuro, mas com o olhar de transformação nos desafios de hoje: a Governança do Futuro. É lugar comum reconhecer que o mundo mudou, a tecnologia evoluiu, e os desafios e as demandas da Administração Pública se tornaram mais complexos. Não se propõe aqui um novo conceito, novos requisitos ou coisa do tipo. O que se pretende é inaugurar um movimento, com toda a força, dinamismo e vocação para ação que o termo “movimento” representa.
A Governança do Futuro não abandona os três pilares tradicionais - pelo contrário, os mantém como base sólida. Mas faz uma releitura transformadora desses pilares e acrescenta dois elementos fundamentais que não podem mais ficar de fora: Inteligência Artificial e Valor.
A Inteligência Artificial é um pilar que transforma tudo. A IA não é apenas uma ferramenta, é um elemento estruturante da nova governança. Ela automatiza tarefas repetitivas, libera o servidor para atividades mais estratégicas, melhora a qualidade das decisões através da análise de dados, e democratiza o acesso à informação. E mais que isso, ela potencializa, “anaboliza” as capacidades dos servidores que trabalham na execução, e apresenta novos horizontes, antes insondáveis, ao tomador de decisão. Pensar em governança hoje, sem envolver IA, seria como pensar em uma casa sem eletricidade.
O outro pilar é o Valor. Valor aqui significa o propósito pelo qual a Administração Pública existe: a concretização de direitos fundamentais do cidadão. Não é que a clássica governança pública não abrace o Valor, ao contrário, ele está lá desde sempre:
Para estudar o grau de importância de uma prática de governança é necessário mensurar em conjunto a qualidade da gestão resultante da estrutura de governança (é o que se busca realizar nos trabalhos de levantamento de governança de TI, de pessoas e de aquisições) e também mensurar em conjunto a qualidade dos resultados entregues ao cidadão que decorrem dos processos de gestão.[4]
Mas elevar o Valor ao patamar de “coluna estruturante” da governança pública do futuro é deixá-lo à mostra, em primeiro plano, como a dizer “não se esqueçam dele”, ou “pautem toda a ação da Administração Pública através dele. É a manifestação do interesse público, tema para o qual dedicamos um livro inteiro[5]. Em suma, o Valor deve estar explícito para jamais se confundir governança com mera gestão. É a pergunta que deve orientar todas as decisões: isso que estou fazendo concretiza direitos fundamentais? Entrega mais valor para o cidadão?
Esses dois novos pilares passam a ressignificar e reestruturar as demais colunas da governança. Assim, a Liderança abraça a transformação digital, não tem medo da inovação, prepara as equipes para os desafios do futuro, sempre tendo como bússola o Valor. A Estratégia, por sua vez, deve necessariamente pensar a incorporação das ferramentas tecnológicas, de processos automatizados, considerar cenários de transformação digital, sempre sob a ótica do Valor. Já o Controle é humano e inteligente, usa dados para tomada de decisão, monitora resultados em tempo real, foca no que realmente importa: concretizar direitos fundamentais.
Termino este ensaio com uma provocação que sempre faço: quanto de direitos fundamentais seu órgão público entrega? Quanto mais ele poderia entregar se reorganizasse seus processos, se abraçasse a tecnologia, se pensasse de forma mais estratégica?
A Governança do Futuro para a Administração Pública não é um conceito abstrato. É uma necessidade concreta, urgente, inadiável. É a diferença entre ser um mero gestor que cumpre protocolos e ser um verdadeiro governante que transforma realidades. Porque, no final das contas, governança é isso: a arte e a ciência de fazer com que o poder público sirva verdadeiramente ao povo, entregando mais direitos, mais dignidade, mais esperança. E isso, meus amigos, não é apenas possível. É nosso dever.
[1] Pioneiro na utilização de Inteligência Artificial em Licitações e Contratos. Mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Público. Membro da Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União (TCU). Professor de Licitações e Contratos. Advogado.
[2] BARBOSA, Jandeson da Costa. Contrata+Brasil: uma análise do 14-bis das compras públicas. Disponível em: <https://virtugestaopublica.com.br/contratabrasil-uma-analise-do-14-bis-das-compras-publicas>. Acesso em: 07 ago 2025.analo
[3] CHAUI, Marilena. A universidade pública sob nova perspectiva. Revista Brasileira de Educação. set./out./nov./dez, 2003.
[4] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1273/2015-Plenário. Relator: Ministro Augusto Nardes.
[5] BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.