Documentos de habilitação obrigatórios ou não em uma contratação pública regida pela Lei 14.133/2021
O texto analisa, sob perspectiva jurídica e prática, a obrigatoriedade ou não dos documentos de habilitação na Lei 14.133/2021, propondo uma classificação ontológica em quatro categorias: (i) necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil, que abrange identidade, capacidade jurídica e poderes de representação, sendo sempre exigida; (ii) implemento de política pública, como documentos fiscais, sociais e trabalhistas, passíveis de dispensa nas hipóteses legais ou excepcionais; (iii) exigência do poder de polícia administrativa, vinculada a normas gerais impostas a todos, inclusive em relações privadas; e (iv) razoável impacto teórico sobre a execução do objeto, que inclui exigências técnico-operacionais e econômico-financeiras determinadas por conveniência e oportunidade fundamentadas. Conclui que a Administração deve exigir apenas o estritamente necessário e proporcional, com motivação técnica, evitando restrições indevidas à competitividade e assegurando a boa execução contratual.
LICITAÇÕESHABILITAÇÃO
Jandeson da Costa Barbosa
8/8/202523 min read
Documentos de habilitação obrigatórios ou não em uma contratação pública regida pela Lei 14.133/2021
Jandeson da Costa Barbosa
Pioneiro na utilização de IA em Licitações e Contratos. Mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Público. Membro da Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União (TCU). Professor de Licitações e Contratos. Advogado.
A fase de habilitação dos licitantes é um dos temas das contratações públicas de maior relevância, tanto pela sua complexidade teórica, a entrelaçar diversos ramos do conhecimento, quanto pelo seu aspecto prático: define se o fornecedor poderá ou não ser contratado pela Administração.
É certo que um aprendizado meramente instrumental pode facilmente responder a questões triviais já adequadamente regulamentadas pelo edital da licitação. Contudo, não se deve olvidar que a resposta a questionamentos mais complexos e balizadores daquilo que pode ou não ser disposto no edital exige análise mais aprofundada, pois entendimentos jurídicos devem ser construídos percorrendo confiáveis caminhos interpretativos, alguns inescapáveis. Existe até uma ciência para estudá-los: a hermenêutica[1].
E é sob essas premissas que convido o nobre leitor à reflexão de que o adequado entendimento acerca da exigibilidade dos documentos de habilitação exige bem mais do que a leitura dos arts. 62 a 71 da Lei 14.133/2021. Devemos retroceder à compreensão ontológica de tais exigências. Àqueles que não estão acostumados com o termo, esclarecemos que seu significado é, na verdade, bastante simples. O estudo etimológico da palavra ontologia aponta que óntos, traduzido do grego, significa “ser” ou “ente”, ao passo que logos pode significar “estudo” ou “ciência”.
Portanto, uma “classificação ontológica” se refere à divisão de algo segundo a natureza, a “essência de ser” do que se está classificando. E é isto que faremos com os documentos da fase de habilitação da Lei 14.133/2021. Longe de ser apenas um esforço acadêmico ou teórico, é precisamente essa “natureza do existir” que tem o potencial de nos informar acerca da obrigatoriedade ou não de cada um desses documentos.
O art. 62 da Lei 14.133/2021 divide a habilitação em: jurídica; técnica; fiscal, social e trabalhista; e econômico-financeira. Essa classificação é didática para demonstrar a finalidade de cada documento, mas é insuficiente, per se, para nos responder ao questionamento quanto à sua obrigatoriedade ou não. E, aqui, cabe destacar que a interpretação literal do texto legal não é suficiente para responder à nossa pergunta. Ou seja, não é porque a referência à documentação está na Lei que esta será obrigatória em todas as circunstâncias. Tomar essa conclusão apressada seria desprezar, justamente, que existe uma ciência dedicada apenas a estudar as formas de interpretação, a hermenêutica, como tratamos acima. Nesse sentido aponta Marçal Justen Filho:
O elenco dos arts. 63 a 70 deve ser reputado como máximo e não como mínimo. Ou seja, não há imposição legislativa a que a Administração, em cada licitação, exija comprovação integral quanto a cada um dos itens contemplados nos referidos dispositivos. O edital não poderá exigir mais do que ali previsto, mas poderá demandar menos.[2]
Corroboramos o entendimento do festejado autor, pois, de fato, o “edital não poderá exigir mais do que ali previsto, mas poderá demandar menos”. Assim, o objetivo do presente ensaio é investigar o quão menos é possível ser exigido em termos de documentos de habilitação. Em outras palavras, o objetivo deste estudo é apontar quais documentos são obrigatórios e, portanto, devem ser sempre exigidos, e quais não ostentam tal obrigatoriedade.
Ocorre que essa pergunta demanda, como já mencionado, um exercício interpretativo para além da superfície do texto legal. Exige um verdadeiro “penetrar nas entranhas”, na “essência do existir”, na classificação ontológica de cada um desses documentos de habilitação. Precisamos saber qual a finalidade da sua existência, quais valores constitucionais (suporte axiológico) sustentam a sua exigência ou não, qual a intenção do legislador ao inseri-los na Lei 14.133/2021 e, por derradeiro, qual a sua utilidade e quem pode dela dispor.
Assim, propomos dividir os documentos de habilitação nas seguintes categorias quanto à natureza da sua exigência: necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil; implemento de política pública; exigência do poder de polícia estatal; e, por fim, por razoável impacto teórico sobre a execução do objeto.
Necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil
Alguns documentos decorrem da necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil do tipo de contratação e da forma adotada, do modo como são celebrados. Há exigências derivadas do direito civil que impactam a forma dos contratos e negócios jurídicos. Por exemplo, um menor de idade, com 16 anos, não pode celebrar um negócio jurídico sem ser assistido por alguém maior de idade. Por sua vez, uma pessoa física não pode simplesmente dizer que é o representante (presentante, na verdade) de uma pessoa jurídica sem demonstrar por meio de documentos que o é. Um Microempreendedor Individual (MEI) não pode ser contratado em certas situações. É o que Roberto Dromi chama, desde a década de 1970, de requisitos subjetivos de “capacidad” e “representación”.[3]
Desse modo, existem documentos exigíveis por decorrência lógica do ajuste que se pretende realizar e da forma exigida. No exemplo de um jovem de 16 anos que alega agir em nome de uma empresa que pretende ser contratada, há uma necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil, decorrente das exigências jurídicas de forma, da apresentação de documento pessoal de identidade, de maior de idade que haja na função de seu assistente, do documento de identidade desse assistente, bem como de documentos da empresa que comprovem a sua existência e que aquela pessoa física pode presentá-la.
Nessa toada, torna-se claro que a documentação exigida para fins de habilitação jurídica, em regra, deve ser exigida por decorrência de uma necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil. Não há como dispensar, em situações ordinárias, que seja demonstrada a existência da pessoa jurídica, ou que a pessoa física comprove a sua identidade e que tem poderes para agir em nome da empresa. Também estão no bojo dessa documentação as exigências de direito civil e empresarial referentes à comprovação de que a empresa pode atuar naquele ramo de atividade.
Não à toa, o art. 66 da Lei 14.133/2021 tem redação bastante singela:
Art. 66. A habilitação jurídica visa a demonstrar a capacidade de o licitante exercer direitos e assumir obrigações, e a documentação a ser apresentada por ele limita-se à comprovação de existência jurídica da pessoa e, quando cabível, de autorização para o exercício da atividade a ser contratada.
Importante ressaltar que a exigência de tais documentos deve ocorrer sob o prisma do “princípio do formalismo moderado – que não deve ser confundido com informalismo –, respeitadas as solenidades quando exigidas por lei”[4]. Assim, somente podem ser exigidos aqueles documentos que sejam imprescindíveis para comprovar a situação de existência e capacidade jurídica do licitante.
Necessário apontar, também, que a dispensa dos documentos de habilitação possibilitada pelo art. 70, inciso III, da Lei 14.133/2021 tem pouco resultado prático sobre a habilitação jurídica, eis que estes são exigidos por necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil da contratação, já sendo vedada pelo art. 66 a exigência de documentos desnecessários para esse fim.
Implemento de política pública
Existem, ainda, aqueles documentos de habilitação que são exigidos em decorrência de política pública adotada pelo Estado. Esses documentos não são exigidos em contratações regidas pelo direito privado e não têm relação direta com a boa prestação do objeto a ser contratado. A sua exigência ocorre porque o Legislador escolheu utilizar esse importante naco do PIB do país, as contratações públicas, para incentivar os licitantes a respeitarem determinados programas, a adotarem determinada conduta.
Por não serem exigidos a partir de uma necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil, do poder de polícia administrativa ou para garantir a boa execução do objeto, mas sim por causa de uma escolha política do Legislador, apenas esse tem o poder para dispensá-las, em circunstâncias normais.
São exemplos de documentos de habilitação para implemento de política pública a habilitação social, fiscal e trabalhista. Também constituem esse grupo as exigências que incentivem as empresas a determinadas práticas que são recomendáveis, mas que não obrigatórias nas contratações de direito privado, como ocorre quando se exige a implementação de programa de compliance.
É sobre esses documentos que faz mais sentido a dispensa de habilitação do art. 70, inciso III, da Lei 14.133/2021. Como o Legislador os exigiu por uma decisão política, este pode igualmente dispensá-los nas ocasiões que julgar conveniente. Importante mencionar que há divergência doutrinária quanto à possível obrigatoriedade de se “exigir ao menos os documentos de habilitação de regularidade com a seguridade social (com previsão constitucional no art. 195, § 3º, da Constituição) e a Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas (CNDT)”[5] mesmo nesses casos.
Importante salientar que essa é a regra geral. Como exploramos em outro trabalho[6], “é claro que há situações em que a norma-regra traz a ponderação de valores ‘quase por completo’, mas ainda assim caberá ao intérprete uma margem – maior, menor ou mínima – para considerar os elementos do caso concreto”[7].
Assim, ainda que não esteja previsto na Lei, o intérprete deve ter a flexibilidade para dispensar esses documentos em situações excepcionalíssimas, em que não seja possível exigi-los sem que haja um acentuado prejuízo ao interesse público, quase que como uma “excludente de culpabilidade” por “inexigibilidade de conduta diversa”, tomando por empréstimo esses conceitos do direito penal. Podemos citar como exemplo: a contratação de um serviço prestado em regime de monopólio; a contratação por inexigibilidade de licitação por fornecedor exclusivo com exclusividade absoluta de objeto imprescindível e insubstituível; contratação emergencial em que não seja possível contratar outro prestador.
Poder de polícia administrativa
Há documentos cuja exigência não decorre do direito civil ou empresarial, mas do poder de polícia administrativa. Maria Sylvia Zanella Di Pietro define poder de polícia como “a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”. A nossa “autora maior” diferencia o conceito que nos interessa, o de polícia administrativa, apontando que esta “se rege pelo Direito Administrativo, incidindo sobre bens, direitos ou atividades” e “se reparte entre diversos órgãos da Administração, incluindo, além da própria polícia militar, os vários órgãos de fiscalização aos quais a lei atribua esse mister, como os que atuam nas áreas da saúde, educação, trabalho, previdência e assistência social”.[8]
Celso Antônio Bandeira de Mello é, possivelmente, o autor clássico que trata de forma mais extensiva do tema. Tomemos sua valiosa lição:
“O poder expressável através da atividade de polícia administrativa é o que resulta de sua qualidade de executora das leis administrativas. E a contraface de seu dever de dar execução a estas leis.
Para cumpri-lo não pode se passar de exercer autoridade - nos termos destas mesmas leis - indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam sujeitos ao império destas leis. Daí a "supremacia geral" que lhe cabe.
O poder, pois, que a Administração exerce ao desempenhar seus encargos de polícia administrativa repousa nesta, assim chamada, "supremacia geral", que, no fundo, não é senão a própria supremacia das leis em geral, concretizadas através de atos da Administração.”[9]
Nessa senda, os documentos exigíveis por decorrência do poder de polícia administrativa são aqueles que se prestam a demonstrar que a licitante atende a condições impostas pela Administração, que o faz com o fito de proteger a coletividade. Estamos nos referindo, por exemplo, a uma licença sanitária, ambiental, do Corpo de Bombeiros etc. Como apontado por Di Pietro, o poder de polícia administrativa geralmente é manifestado através da temática do órgão que o detém, podendo se referir a segurança, saúde, defesa civil, dentre outros.
Necessário estabelecer importante diferenciação desses documentos com aqueles destinados ao “implemento de política pública”. É óbvio que os documentos exigidos a título de poder de polícia administrativa também têm o condão de implementar políticas públicas, mas o que os diferencia dos primeiros é justamente o fato de que o poder de polícia administrativa é exercido sobre todas as pessoas, ainda que atuem em uma avença privada. É uma exigência geral, e não apenas para aqueles que aceitaram contratar com a Administração Pública.
Nesse sentido, é relevante colher mais uma lição de Bandeira de Mello, acerca do caráter geral do poder de polícia administrativa:
Os doutrinadores italianos distinguem - com proveitosos resultados - esta "supremacia geral" da "supremacia especial", que só estará em causa quando existam vínculos específicos travados entre o Poder Público e determinados sujeitos.
Bem por isso, não se confundem com a polícia administrativa as manifestações impositivas da Administração que, embora limitadoras da liberdade, promanam de vínculos ou relações específicas firmadas entre o Poder Público e o destinatário de sua ação. Desta última espécie são as limitações que se originam em um título jurídico especial, relacionador da Administração com terceiro.
Assim, estão fora do campo da polícia administrativa os atos que atingem os usuários de um serviço público, a ele admitidos, quando concernentes aquele especial relacionamento.[10]
Nesses casos, a Administração Pública age com a sua face de protetora da coletividade. Considere a situação em que são exigidos a todos que estiverem naquela situação documentos que comprovem, por exemplo, a segurança, adequação sanitária ou de defesa civil. Não faria sentido a Administração exigi-los nas avenças entre particulares e deixar de exigi-los justamente quando o negócio se dá com ela própria.
É por isso que a dispensa de documentos de habilitação realizada pelo art. 70, inciso III, nas hipóteses ali enumeradas, não pode abranger os documentos decorrentes do poder de polícia administrativa. É um consectário lógico. De igual modo, não há, nesses casos, análise de conveniência e oportunidade a ser realizada pela Administração Pública na sua nuance contratante, pois ela própria deve se submeter às normas a todos por ela impostas.
Aos servidores que laboram na fase de planejamento da contratação cabe verificar se, naquela situação, é realmente exigível este ou aquele documento, para não “inventar” a necessidade de documentos indevidos, como, por exemplo, exigir um alvará do Corpo de Bombeiros que não se aplica àquela situação. É possível, ainda, que a Administração contratante requeira, por exemplo, critérios de segurança adicionais, como uma certificação específica ou um padrão de desempenho, mas nesses casos não estaremos diante de documentos exigidos pelo poder de polícia administrativa, mas sim da categoria “por razoável impacto teórico sobre a execução do objeto”, a qual veremos a seguir.
Por razoável impacto teórico sobre a execução do objeto
Existem hipóteses em que a documentação exigida para habilitação não decorre diretamente de uma necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil, da implementação de políticas públicas ou mesmo do poder de polícia administrativa. Trata-se daquelas situações nas quais se requer determinado documento porque, teoricamente, a sua ausência pode impactar a execução satisfatória do objeto licitado. Nesses casos, a exigência é feita em virtude de uma análise preditiva, fundamentada em estudo técnico preliminar ou termo de referência, que demonstre que determinado requisito documental assegura ou aumenta significativamente a probabilidade de execução adequada do objeto.
Observemos o seguinte trecho de obra de Joel Menezes Niebuhr, em que o autor discorre acerca da fase da habilitação:
“A análise da utilidade, necessidade, relevância e pertinência das exigências realizadas em habilitação deve partir do objeto licitado e das suas especificidades. O objeto da licitação é o fator determinante e último para que se possa apontar quais as exigências que se harmonizam ou não ao princípio da competitividade.”[11]
Concordamos com raciocínio do prestigiado autor, ressalvando apenas que esse entendimento deve ser restrito ao que chamamos de documentos exigidos “por razoável impacto teórico sobre a execução do objeto”. Entendemos que não há a possibilidade da aferição de “utilidade, necessidade, relevância e pertinência” (que nada mais é do que o conhecido juízo de conveniência e oportunidade), em regra, nos documentos exigidos em decorrência de necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil, de implemento de política pública ou de exigência do poder de polícia estatal sem norma que assim autorize, pelos motivos já enumerados neste ensaio.
Diferentemente das exigências vinculadas diretamente às citadas necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil e poder de polícia administrativa, as exigências por razoável impacto teórico sobre a execução do objeto não possuem aplicação universal, mas são estabelecidas pela Administração-contratante considerando o caso concreto, sua complexidade e especificidades técnicas.
É claro que não se trata de mera vontade potestativa do administrador público, mas sim da sua análise de conveniência e oportunidade a partir da aplicação de critérios técnicos objetivos que indicam, com razoável segurança, que a ausência daquele documento poderá comprometer, em algum grau, a qualidade, o prazo ou a eficiência da execução do objeto contratado.
Nesse cenário, são comuns exigências relacionadas a certificados de qualidade, demonstrações de experiência anterior em objetos similares ou equivalentes, qualificação específica de pessoal técnico, dentre outros. O propósito é assegurar, com razoável segurança, que a empresa habilitada possui capacidade técnica real e mensurável para cumprir as obrigações contratuais com a Administração Pública.
Importante notar que tais exigências devem estar estritamente amparadas por fundamentos técnicos e não meramente burocráticos, para não violar o princípio da competitividade. Caso contrário, podem gerar contestações administrativas e judiciais por restrição injustificada à concorrência.
Nas palavras de Ronny Charles Torres, “todo reforço de exigência de habilitação, mesmo quando previsto na legislação, impõe uma restrição à competitividade, já que cada exigência, em tese, retira interessados do rol de prováveis licitantes”[12]. O problema não é a restrição da competitividade em si, mas sim quando esta é indevida.
Em suma, o uso do critério de “razoável impacto teórico sobre a execução do objeto" exige, acima de tudo, cautela e razoabilidade do intérprete, para que este esteja sempre alinhado aos princípios norteadores da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, especialmente o interesse público, a eficiência e a motivação adequada de suas decisões.
Nessa senda, são exigidos por razoável impacto teórico sobre a execução do objeto os documentos da habilitação técnica que não derivam de exigência legal, mas os quais a Administração considera razoável exigir para, teoricamente, aumentar a probabilidade da boa execução do objeto. Citamos como exemplo alguns documentos do art. 67 da Lei 14.133/2021 como os atestados de capacidade técnica (inciso II); indicação do pessoal técnico, das instalações e do aparelhamento adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada membro da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos (inciso III); e declaração de que o licitante tomou conhecimento de todas as informações e das condições locais para o cumprimento das obrigações objeto da licitação (inciso VI).
Os documentos de habilitação técnica que sejam obrigatórios por lei ou outro ato regulamentar são classificados como exigidos em decorrência do “poder de polícia administrativa”. Assim, caso haja normativo geral obrigando a existência de apresentação de profissional com registro ou inscrição na entidade profissional competente, estaremos diante de obrigação decorrente do poder de polícia administrativa.
É essencial perceber que esses documentos que a Administração decide exigir “por razoável impacto teórico sobre a execução do objeto” não são obrigatórios nas contratações em geral para aquele objeto. É o administrador público que, utilizando seu juízo de conveniência e oportunidade, sempre com vista à concretização do interesse público, decide “reforçar” as exigências mínimas legais com critérios razoáveis. São exigências específicas para aquela contratação com a Administração. Caso o objeto fosse contratado com um particular, não haveria obrigatoriedade de entregar tais documentos, a menos que o contratante exigisse por sua vontade.
Nessa trilha, é possível concluir que a dispensa de documentos de habilitação do art. 70, inciso III, da Lei 14.133/2021 tem pouco efeito prático sobre esse tipo de documento. Isso porque estes já não eram exigidos por obrigação normativa, foi a Administração Pública que julgou ser conveniente e oportuno requerê-los. Ou seja, caso a Administração quisesse dispensá-los, não haveria necessidade de se socorrer da autorização legal do citado art. 70, esta não estava obrigada a exigi-los.
Os documentos relativos à habilitação econômico-financeira situam-se precisamente no núcleo daqueles cuja exigência decorre de um razoável impacto teórico sobre a execução do objeto contratado. Tais documentos têm como objetivo central assegurar que o licitante possui saúde financeira suficiente para suportar, com razoável segurança, a execução das obrigações assumidas perante a Administração Pública, especialmente no tocante aos riscos de inadimplemento, interrupção ou retardamento indevido do objeto.
A Lei 14.133/2021, no seu artigo 69, detalha as exigências máximas possíveis para comprovar essa capacidade econômico-financeira. Note-se que não há, na essência dessas exigências, uma ligação direta com a necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil, nem se trata de exercício do poder de polícia administrativa ou de implemento de política pública.
Com efeito, o exame da saúde econômico-financeira do licitante não é requisito absoluto e inafastável em toda e qualquer contratação pública, mas advém de uma análise técnico-gerencial dos riscos específicos do objeto a ser contratado. Tal análise deve considerar aspectos como o volume financeiro da contratação, a complexidade técnica e econômica do objeto, o impacto financeiro na execução contratual, o grau de dependência da Administração em relação àquele objeto e, sobretudo, os prejuízos potenciais ao interesse público decorrentes de eventual inadimplemento contratual.
Nessa linha de raciocínio, o princípio da proporcionalidade – em seus subprincípios necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito – serve como norte hermenêutico ao intérprete ao estabelecer essas exigências. Não se trata de realizar uma análise financeira arbitrária, mas sim de fundamentar tecnicamente cada exigência no sentido de que elas estejam justificadas pelo razoável impacto que a situação financeira do licitante possa ter sobre a execução satisfatória do objeto. Daí decorre a necessidade de elaboração detalhada de estudos técnicos preliminares, que demonstrem com clareza a relação direta entre os critérios econômico-financeiros exigidos e o risco envolvido naquela contratação específica.
Importa destacar ainda que a jurisprudência consolidada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) tem apontado que as exigências de habilitação econômico-financeira devem ser estritamente proporcionais à dimensão e complexidade do objeto, com vistas a não restringir indevidamente a competitividade ou gerar impactos negativos no certame licitatório. Vejamos dois entendimentos sumulados do Tribunal:
Súmula TCU 289: A exigência de índices contábeis de capacidade financeira, a exemplo dos de liquidez, deve estar justificada no processo da licitação, conter parâmetros atualizados de mercado e atender às características do objeto licitado, sendo vedado o uso de índice cuja fórmula inclua rentabilidade ou lucratividade.
Súmula TCU 275: Para fins de qualificação econômico-financeira, a Administração pode exigir dos licitantes, de forma não cumulativa, capital social mínimo, patrimônio líquido mínimo ou garantias que assegurem o adimplemento do contrato a ser celebrado, no caso de compras para entrega futura e de execução de obras e serviços.
Portanto, fica evidente que a documentação relativa à habilitação econômico-financeira integra o grupo dos documentos cuja exigibilidade se apoia numa construção técnica e teórica da relação causal entre a situação financeira dos licitantes e o sucesso da execução da contratação. Não sendo uma imposição absoluta nem de caráter universal, é fruto do juízo discricionário-administrativo qualificado pela fundamentação técnica específica, resultante do cuidadoso exercício da análise de risco contratual, sempre pautado pelos limites impostos pela razoabilidade, proporcionalidade e motivação adequada.
Dessa maneira, é fundamental que o administrador público compreenda a responsabilidade que assume ao formular tais exigências. Elas devem sempre ser motivadas por evidências técnicas sólidas, não podendo derivar de meras preferências pessoais ou excesso de cautela não fundamentada, a fim de não restringir indevidamente a competitividade. Caso não seja demonstrada a necessidade, adequação e proporcionalidade da exigência, a Administração deverá deixar de exigi-los.
Nessa linha, o Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) firmou entendimento recente:
A exigência de balanço patrimonial prevista no art. 69, inciso I, da Lei Federal nº 14.133 /2021 representa o máximo permitido e não o mínimo obrigatório, cabendo à Administração, mediante justificativa, definir os requisitos de habilitação econômico-financeira proporcionais à complexidade do objeto licitado
(Acórdão 1034/2025 - TCE-PE-Primeira Câmara)
Nessa senda também trilham Marcus Alcântara e Ronny Charles Torres:
A Lei nº 14.133/2021 estabeleceu no seu artigo 69 os limites para exigência de habilitação econômico-financeira. Seu texto não induz que todos os documentos devam ser exigidos. O caput do referido artigo reforça esta ideia, ao exigir justificativa no processo licitatório.
Desse modo, o responsável pela confecção do edital tem o dever de examinar o caso concreto e definir o que será necessário para aferir a capacidade econômico-financeira dos licitantes, estipulando quais os documentos a exigir, respeitados os limites máximos admitidos pela Lei. [13]
Ademais, é sempre importante mencionar que a própria Constituição da República estabelece, em seu art. 37, inciso XXI, que o processo de licitação pública “somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.
Por serem documentos cuja exigência decorre da análise da conveniência e oportunidade aferida pelo administrador público, deverá constar no ETP ou em outro documento hábil a devida justificativa. Isso porque, se é competência do administrador realizar a análise do mérito administrativo, esta vem acompanhada do ônus da fundamentação, a fim de se verificar que a restrição está realmente calcada no interesse público, e se há razoabilidade na sua exigência.
Documentos obrigatórios e não obrigatórios
Por todo o exposto, entendemos que, salvo em circunstâncias excecionalíssimas, devem obrigatoriamente constar como documentos de habilitação em todas as contratações, em razão da necessidade de comprovação de capacidade e legitimidade civil, a documentação de habilitação jurídica, conforme art. 66 da Lei 14.133/2021.
Noutro giro, sempre ressalvando situações excecionalíssimas, devem obrigatoriamente constar em todas as contratações, salvo quando dispensados nas hipóteses do art. 70, inciso III, da Lei 14.133/2021, em razão de implemento de política pública, as habilitações fiscal, social e trabalhista, nos termos do art. 68 da Lei 14.133/2021.
Por seu turno, devem obrigatoriamente constar nas contratações cuja legislação de regência do objeto a ser contratado assim determine, em razão de exigência do poder de polícia administrativa: os documentos de habilitação técnica cuja obrigatoriedade decorra da legislação, e que sejam igualmente exigíveis quando aquele objeto é prestado no âmbito das relações privadas.
Por fim, podem ou não ser exigidos, segundo análise de conveniência e oportunidade do administrador público, obviamente sob o prisma do interesse público (todo ato discricionário tem elemento “motivo” vinculado), por razoável impacto teórico sobre a execução do objeto: os documentos de habilitação técnica que não decorram de obrigatoriedade da legislação, ou seja, que não sejam exigidos em função do poder de polícia administrativa; e os documentos de habilitação econômico-financeira.
REFERÊNCIAS
ALCÂNTARA, Marcus. TORRES, Ronny Charles Lopes de. Lei n. 14.133/2021 e a exigência de balanço patrimonial dos 2 (dois) últimos exercícios sociais: uma análise crítica. Disponível em: < https://ronnycharles.com.br/wp-content/uploads/2024/08/Artigo-Final-A-exigencia-do-balanco-patrimonial-dos-ultimos-dois-anos-4.pdf>. Acesso em: 30 jul 2025.
BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.
________________. A validade da prorrogação do contrato ocorre na data da assinatura. Acesso em: <https://virtugestaopublica.com.br/a-validade-da-prorrogacao-do-contrato-ocorre-na-data-da-assinatura>. Acesso em: 05 ago 2025.
________________. Como instruir uma dispensa de licitação em razão do valor em menos de uma hora. Disponível em: < https://virtugestaopublica.com.br/como-instruir-uma-dispensa-de-licitacao-em-razao-do-valor-em-menos-de-uma-hora>. Acesso em: 05 ago 2025.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 37. ed.
DROMI, José Roberto. Licitacion publica. 2. ed. atual. Buenos Aires: Ciudad Argentina.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30a ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 7.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2024.
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 16.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2025.
[1] Aos interessados, em aprofundar a compreensão acerca do tema, transcrevemos trecho de obra de nossa autoria:
“Mas para avançar é necessário retroceder brevemente e fazer uma rápida incursão sobre o que é a hermenêutica. Sua origem etimológica deriva do verbo grego hermeneuein, que pode ser traduzido como interpretar, assim como o substantivo hermeneia, que significa interpretação. Esses dois vocábulos estão ligados à mitologia grega como caracteres do deus Hermes, que ‘era, na visão da antiguidade ocidental, responsável pela mediação entre os Deuses e os homens’, e atuava ‘unindo a esfera divino-transcendental e a civilização humana’.
Desta feita, é possível concluir que ‘levada à sua raiz grega mais antiga, a origem das atuais palavras, hermenêutica e hermenêutico, sugere o processo de tornar compreensíveis, especialmente enquanto tal processo envolve a linguagem’. É possível depreender também que a hermenêutica transmite a ideia de canal de comunicação entre os deuses e o mortal, entre o poder e o homem, entre o transcendental e o concreto.
Ainda na senda etimológica, ‘a palavra interpretação provém do termo latino interpretare (inter-penetrare), significando penetrar mais para dentro’, o que ‘se deve à prática religiosa de feiticeiros e adivinhos, os quais introduziam suas mãos nas entranhas de animais mortos, a fim de conhecer o destino das pessoas e obter respostas para os problemas humanos’.
Na linha dessa análise etimológica, entre as diversas possibilidades de conceituação da hermenêutica, é possível defini-la como ‘um saber que procura problematizar os pressupostos, a natureza, a metodologia e o escopo da interpretação humana, nos planos artístico, literário e jurídico’. Desse modo, a interpretação ‘indicará uma espécie de compreensão dos fenômenos culturais, que se manifestam através da mediação comunicativa estabelecida entre uma dada obra – como, por exemplo, o sistema jurídico – e a comunidade humana’.”. In: BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 812.
[3] DROMI, José Roberto. Licitacion publica. 2. ed. atual. Buenos Aires: Ciudad Argentina, p. 357.
[4] BARBOSA, Jandeson da Costa. A validade da prorrogação do contrato ocorre na data da assinatura. Acesso em: <https://virtugestaopublica.com.br/a-validade-da-prorrogacao-do-contrato-ocorre-na-data-da-assinatura>. Acesso em: 05 ago 2025.
[5] BARBOSA, Jandeson da Costa. Como instruir uma dispensa de licitação em razão do valor em menos de uma hora. Disponível em: < https://virtugestaopublica.com.br/como-instruir-uma-dispensa-de-licitacao-em-razao-do-valor-em-menos-de-uma-hora>. Acesso em: 05 ago 2025.
[6] “A norma acabada é, na verdade, o resultado da aplicação do texto legal ao caso concreto. Entretanto, também não nos filiamos à tese de que não há norma no texto legal. Prefere-se os conceitos de norma-dado e norma-produto. Segundo essa construção, o texto legal é a norma-dado que regulamenta de maneira abstrata determinada temática. O resultado da aplicação da norma-dado ao caso concreto, considerando todo o contexto envolvido, as suas peculiaridades, as consequências, bem como todos os mandamentos constitucionais que regulam aquela situação-problema é que é a norma-produto.”. In: BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.
[7] BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.
[8] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 37. ed., p. 133-134.
[9] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30a ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 839.
[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30a ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 839.
[11] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 7.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 807.
[12] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 16.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2025, p. 402.
[13] ALCÂNTARA, Marcus. TORRES, Ronny Charles Lopes de. Lei n. 14.133/2021 e a exigência de balanço patrimonial dos 2 (dois) últimos exercícios sociais: uma análise crítica. Disponível em: < https://ronnycharles.com.br/wp-content/uploads/2024/08/Artigo-Final-A-exigencia-do-balanco-patrimonial-dos-ultimos-dois-anos-4.pdf>. Acesso em: 30 jul 2025.