Como instruir uma dispensa de licitação em razão do valor em menos de uma hora
A Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) revoluciona as contratações públicas ao priorizar a flexibilidade e a eficiência em detrimento do formalismo engessado do passado. Este artigo apresenta técnicas especiais que simplificam processos, como a dispensa de habilitação e a antecipação de pagamentos, e oferece uma abordagem prática para conduzir uma dispensa de licitação em menos de uma hora. Ao superar o juspositivismo e o medo de responsabilização, gestores podem adotar soluções inovadoras, garantindo agilidade, transparência e resultados alinhados às demandas da sociedade.
FASE DE PLANEJAMENTODISPENSA DE LICITAÇÃO
Jandeson da Costa Barbosa
10/7/202420 min read
Como instruir uma dispensa de licitação em razão do valor em menos de uma hora
A Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) exige muito do seu aplicador. Há nela um paradoxo que exige olhos treinados para a sua percepção: um razoável domínio jurídico e técnico pode construir processos de contratações públicas de execução relativamente simples. Essa construção demanda mais da alta e média gestão e da assessoria jurídica para tornar mais fácil, assertivo e eficaz o trabalho dos agentes que atuam na ponta: equipe de planejamento, agentes de contratação, gestores e fiscais de contratos etc. É o que pretendemos demonstrar neste artigo.
1. A interpretação arcaica e o medo
Em um mundo em constante evolução, seja no campo tecnológico, social, cultural, conceitual ou de mercado, o direito administrativo clássico, fortemente ligado à interpretação literal das leis, parece incapaz de atender às expectativas da sociedade por uma Administração Pública mais ágil, eficiente, econômica, racional, ética e inovadora.[1]
Mas a prática nos mostra que o problema está mais no intérprete do que na doutrina. Um olhar acurado pode perceber que a doutrina clássica do direito administrativo brasileiro, em nomes como Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Celso Antônio Bandeira de Mello, sempre apontou caminhos hermenêuticos que hoje alguns pretendem apresentar como “novidade”. Em síntese: nossa doutrina é boa. No campo das contratações públicas, são outros os principais responsáveis pelo “atraso” da sua evolução: o juspositivismo arraigado dos intérpretes[2] e o medo dos órgãos de controle, um retroalimentando o outro.
O juspositivismo, enquanto corrente que privilegia a interpretação literal e formal da lei, tem sido uma das principais barreiras para a modernização das contratações públicas no Brasil. Essa visão específica do direito tem sua razão de ser e foi importante no seu tempo. Contudo, a aplicação irrestrita de suas bases na Administração Pública de hoje ignora a complexidade e a dinâmica das demandas sociais atuais, levando a uma aplicação engessada e pouco eficiente das normas. Tornou-se, em suma, uma visão anacrônica. Vejamos:
“No âmbito da Administração Pública, parece ser o método literal de interpretação o vetor interpretativo preferido dos gestores públicos, seja pela simplicidade da sua aplicação, seja pela segurança jurídica que ele proporciona. Entre duas interpretações possíveis, ainda sob a literalidade de um dispositivo legal, por vezes se dá preferência àquela que enseje menor risco aos agentes públicos em eventual ação de controle.
Essa prática “engessa” a atuação do gestor público, diminui a capacidade de gestão, e não raras as vezes representa afronta à eficiência da Administração Pública e causa dispêndio financeiro desnecessário dos sempre escassos recursos públicos. É o que as instâncias de controle já denominaram de “apagão da caneta”, tudo em nome de uma “indisponibilidade do interesse público”.”[3]
Paralelamente, o fenômeno conhecido como "apagão das canetas" revela o medo que assombra muitos gestores públicos. O receio de responsabilizações e sanções faz com que agentes optem pela inércia ou por soluções excessivamente burocráticas, retardando processos que poderiam ser conduzidos de forma mais ágil e eficaz. É o que aponta relevante lição de Rodrigo Valgas dos Santos:
“A alta probabilidade de ser responsabilizado pelo exercício de função pública, num sistema de controle disfuncionalizado, leva ao medo de responsabilização do agente público. Ao mesmo tempo que o medo é consequência dos excessos do con-trole, também é causa, à medida que produz respostas disfuncionais visando a au-toproteção dos agentes públicos, a exemplo do imobilismo decisório decorrente do medo em decidir, o que pode levar a uma postura mais firme dos órgãos de controle no exercício de sua atividade.”[4]
Mas a “culpa” não é apenas dos órgãos de controle – que certamente têm a sua parcela. Muitos gestores acabam considerando cômodo a aplicação literal dos dispositivos legais, sem maiores análises. É mais simples e seguro, e ainda se tem o interessante argumento de que a Administração Pública não evolui por causa do legislador. É o caso peculiar em que o administrador público quer o legislador exerça sua função de administrar – que ele leia o cenário e encontre a melhor solução para o caso concreto por meio de uma norma legal abstrata.
E as peculiaridades não param por aí: há alguns anos são os órgãos de controle que incentivam, em alguma medida, os administradores públicos a ousarem, a inovarem, a se desprenderem de literalidades e de entendimentos tacanhos. A ponto de o atual presidente do Tribunal de Contas da União, Ministro Bruno Dantas, afirmar que “o governo federal apresenta consultas ao TCU com o intuito de obter um mero “conforto espiritual” (sessão plenária de 12/12/2018)”[5]. A combinação do juspositivismo com o apagão das canetas resulta em um arcaísmo interpretativo que impede a evolução necessária das práticas administrativas. Esse cenário atrasa e onera o atendimento das necessidades públicas.
A modernização das contratações públicas exige, portanto, uma mudança de mentalidade de todos. Superar o arcaísmo interpretativo implica reconhecer que a letra da lei é apenas o ponto de partida, e não o limite da atuação administrativa. Ao adotar uma postura mais proativa e menos temerosa, é possível conduzir processos de contratação pública de maneira completa e eficiente, sem sacrificar a legalidade ou a transparência. O “espírito da NLLCA é o de dotar o administrador público de maior autonomia. Essa é, na nossa visão, a correta interpretação sistemática da norma”[6].
Em suma, para avançarmos rumo a uma Administração Pública mais moderna e eficaz, é imprescindível enfrentar o juspositivismo rígido e o medo que paralisa. Somente assim poderemos utilizar plenamente as ferramentas oferecidas pela nova legislação e atender às expectativas da sociedade por serviços públicos de qualidade.
2. Novo paradigma: dos procedimentos especiais às técnicas especiais
A Lei 14.133/2021, ao reformular o sistema de licitações públicas, trouxe uma mudança substancial no modo de conduzir as contratações pela Administração Pública. Abandonando a rigidez excessiva do regime anterior, que fragmentava os procedimentos licitatórios em modalidades distintas — como concorrência, tomada de preços, convite e pregão — a nova lei adotou um modelo unificado e flexível, que se afasta do formalismo exacerbado.
A Lei 8.666/1993 engessava as contratações ao fragmentá-las em múltiplos procedimentos — como concorrência, tomada de preços e convite — com base na natureza e valor do objeto, e da Lei 10.520/2002, que introduziu o pregão como um procedimento específico para compras e serviços comuns.
O principal procedimento licitatório é agora único, aplicável tanto à concorrência quanto ao pregão, independentemente do valor ou da natureza do objeto, conforme descrito no art. 17 da lei. Isso não só simplifica a condução dos processos, como também cria condições para que o gestor público tenha maior liberdade na escolha de soluções adequadas a cada situação concreta.
Essa transformação significa que a Lei 14.133/2021 não busca apenas substituir um modelo por outro; ela introduz um conceito inteiramente novo ao deslocar o foco dos procedimentos rígidos para a utilização de técnicas adaptáveis. A lógica que permeia a nova norma se concentra na eficiência e na racionalidade da contratação, permitindo ao gestor público ajustar o processo às particularidades de cada aquisição. Nesse contexto, a norma abre espaço para uma série de técnicas específicas, que podem ser aplicadas conforme a necessidade do caso concreto, sem comprometer a transparência ou a competitividade do certame.
Essa nova sistemática da Lei 14.133/2021 recordou a este autor compreensão semelhante percebida de forma brilhante no contexto do direito processual civil por Fredie Didier Júnior: “dos procedimentos às técnicas”, no qual o “foco será na compatibilidade da técnica com o procedimento e na sua adequação ao caso”.[7]
Tal mudança de paradigma exige a adequada compreensão principalmente – repise-se – por parte da alta e média gestão e da assessoria jurídica. É necessário entender que a sistemática mudou: agora temos apenas um procedimento – que podemos chamar de procedimento ordinário das contratações administrativas[8], que pode e deve ser combinado com diversas técnicas especiais que têm o potencial de reduzir o custo transacional do processo. Ignorar essa mudança trará um resultado bastante indesejado: utilizar um mesmo procedimento complexo, longo e oneroso para comprar “de uma agulha a um foguete”. Vejamos algumas das “técnicas especiais”.
A primeira técnica especial a ser abordada é talvez a mais paradigmática: a dispensa, total ou parcial de toda a documentação de habilitação para a licitação e, por analogia, para os processos de dispensa e inexigibilidade. É esse o teor do art. 70, inciso III, da Lei 14.133/2021:
Art. 70. A documentação referida neste Capítulo poderá ser:
[...]
III - dispensada, total ou parcialmente, nas contratações para entrega imediata, nas contratações em valores inferiores a 1/4 (um quarto) do limite para dispensa de licitação para compras em geral e nas contratações de produto para pesquisa e desenvolvimento até o valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais).
As vírgulas enumerativas não deixam dúvidas de que são três as hipóteses em que se pode dispensar a habilitação – ou seja, é necessária a ocorrência de apenas uma delas. O primeiro caso é o das “contratações para entrega imediata” independentemente do valor. No caso de bens, é “considerada imediata aquela [compra] com prazo de entrega de até 30 (trinta) dias da ordem de fornecimento” (art. 6º, inciso X, da Lei 14.133/2021).
O segundo caso em que é possível dispensar a habilitação é nas “nas contratações em valores inferiores a 1/4 (um quarto) do limite para dispensa de licitação para compras em geral”, independentemente de haver ou não obrigações futuras. Aqui o critério é unicamente em relação ao valor da contratação.
Por derradeiro, o terceiro caso de dispensa de habilitação é para “contratações de produto para pesquisa e desenvolvimento até o valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais)”. Nessa possibilidade, importa a finalidade do objeto e o seu valor. É necessário recordar que tal valor é atualizado constantemente por decreto do Presidente da República. Observe-se que o legislador, propositalmente, elencou a mesma situação como hipótese de dispensa de licitação (art. 75, inciso, IV, alínea “c”, da Lei 14.133/2021).
A habilitação que pode ser dispensada a critério da Administração nos casos citados abarca a totalidade dos documentos: habilitação jurídica, técnica, fiscal, social, trabalhista e econômico-financeira. Todavia, enquanto não houver posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) em sentido contrário, é prudente à Administração exigir ao menos os documentos de habilitação de a regularidade com a seguridade social (com previsão constitucional no art. 195, § 3º, da Constituição) e a Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas (CNDT).
Em relação à CNDT, o STF julgou recentemente as ADIs 4.716 e 4.742, fixando a seguinte tese: “É constitucional a exigência de apresentação de CNDT nos processos licitatórios como requisito de comprovação de regularidade trabalhista”. Contudo, afirmar que a exigência da CNDT é constitucional não é o mesmo que afirmar que a dispensa da CNDT com esteio no art. 70, inciso III, é inconstitucional.
As referidas ações buscavam a declaração de inconstitucionalidade da exigência, o que foi rechaçado pelo STF, que decidiu pela sua constitucionalidade. E aqui não se faz um juízo de valor, mas apenas a constatação de que os assuntos são diversos. Assim, é provável que o tema seja submetido novamente à Suprema Corte para definir, dessa vez, se a dispensa da CNDT viola a Constituição. Por ora, é prudente exigi-la.
Outra técnica especial relevante é a dispensa do instrumento de contrato, prevista no art. 95 da Lei 14.133/2021. Vejamos:
Art. 95. O instrumento de contrato é obrigatório, salvo nas seguintes hipóteses, em que a Administração poderá substituí-lo por outro instrumento hábil, como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço:
I - dispensa de licitação em razão de valor;
II - compras com entrega imediata e integral dos bens adquiridos e dos quais não resultem obrigações futuras, inclusive quanto a assistência técnica, independentemente de seu valor.
§ 1º Às hipóteses de substituição do instrumento de contrato, aplica-se, no que couber, o disposto no art. 92 desta Lei.
§ 2º É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras ou o de prestação de serviços de pronto pagamento, assim entendidos aqueles de valor não superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).
A Lei 14.133/2021 também trouxe a possibilidade de antecipação de pagamento em circunstâncias específicas. O art. 145 da lei trata da antecipação de pagamento, prevendo que esta pode ocorrer em contratações cujas condições de mercado exijam essa prática ou quando a Administração Pública puder obter condições mais vantajosas com o pagamento antecipado. Essa técnica, ainda que vista com certo receio por alguns gestores, é um importante mecanismo para flexibilizar contratações em que a antecipação é necessária para a própria viabilidade ou eficiência da execução.
Noutro giro, um dos aspectos mais inovadores da Lei 14.133/2021 está no art. 75, § 4º, que trata da forma de pagamento para contratações realizadas por dispensa de licitação. O dispositivo legal prevê que "as contratações de que tratam os incisos I e II do caput deste artigo serão preferencialmente pagas por meio de cartão de pagamento, cujo extrato deverá ser divulgado e mantido à disposição do público no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP)".
Impende ressaltar que o cartão de pagamento não deve ser confundido com o suprimento de fundos (geralmente operado pelo "cartão corporativo"). Enquanto o suprimento de fundos é um mecanismo utilizado para realizar tanto a contratação quanto o pagamento diretamente por meio do cartão corporativo, o cartão de pagamento, conforme previsto na Lei 14.133/2021, é uma ferramenta apenas para processar o pagamento de uma contratação já realizada.
Esse novo instrumento de pagamento facilita a quitação de obrigações em contratações simples e de pequeno valor, assegurando maior agilidade no processo e reduzindo o tempo entre a realização da contratação e o seu efetivo pagamento. Além disso, o uso do cartão de pagamento garante maior transparência, uma vez que o extrato das transações deve ser disponibilizado publicamente no PNCP, aumentando o controle social sobre as despesas públicas.
Ao unificar os procedimentos licitatórios e introduzir uma gama de técnicas aplicáveis conforme as necessidades de cada contratação, a Lei 14.133/2021 coloca sobre o gestor público a responsabilidade de adaptar o processo à realidade concreta, sem se prender a formalismos obsoletos. A gestão passa a ser muito mais técnica, exigindo análise criteriosa das ferramentas disponíveis e um foco claro nos resultados esperados. Importante salientar, contudo, que a flexibilidade proporcionada pela Lei não significa menos controle, mas sim uma alocação mais racional dos esforços burocráticos, de modo a garantir a celeridade e a eficiência sem sacrificar a transparência e a lisura do processo.
Ao fim, essa transformação representa uma evolução no modo como a Administração Pública lida com suas contratações, privilegiando a adaptabilidade técnica e a eficiência em detrimento do cumprimento rígido de formalidades que, muitas vezes, geravam apenas entraves à execução das políticas públicas. Cumpre aos órgãos de controle e às assessorias jurídicas apontarem aos gestores o novo paradigma, e a esses gestores e aos servidores em geral terem a altivez e a formação necessárias para utilizar as técnicas especiais.
3. Receita de bolo: uma dispensa de licitação por valor completa em menos de uma hora
Cada tipo de contratação, cada objeto, cada realidade administrativa do órgão público exigirá uma montagem de técnicas especiais diferente. Vamos, contudo, dar uma “receita de bolo” de compra de um bem como forma de exemplificar o novo paradigma. É necessário salientar que para se fazer um bolo não bastam os ingredientes, são necessários alguns equipamentos. Do mesmo modo, para executar essa receita, é imprescindível que o órgão público tenha os regulamentos para a implementação de cada uma das técnicas utilizadas a seguir.
A título de exemplo, imagine-se que se pretenda comprar 10 (dez) umidificadores de ar por dispensa de licitação em razão do valor (art. 75, inciso II, da Lei 14.133/2021). A unidade demandante certamente elaborou o Documento de Formalização de Demanda (DFD), que nada mais é que o pedido de um objeto proposto com as informações mínimas (art. 72, I, da Lei 14.133/2021).
De posse o DFD, dispense a elaboração do Estudo Técnico Preliminar (ETP) com fundamento no regulamento do seu órgão, ou, caso não tenha tal regulamento, utilize por analogia o art. 14, inciso I, da IN-Seges 58/2022. Utilize o ChatGPT ou outra ferramenta de inteligência artificial para elaborar apenas os elementos essenciais do termo de referência, como, no exemplo, aqueles enumerados no art. 40, § 1º, da Lei 14.133/2021.[9]
Aqui cabe apontar que os elementos do termo de referência trazido pelo art. 6º, inciso III, e pelo citado art. 40, § 1º, ambos da Lei 14.133/2021, não são todos obrigatório, mas devem ser utilizados apenas aqueles aplicáveis ao caso concreto. Ao contrário do que fez com o ETP no art. 18, § 2º, da Lei 14.133/2021, o legislador não apontou quais são os elementos mínimos do termo de referência, deixando tal lacuna para a regulamentação infralegal ou mesmo para a interpretação do administrador público no caso concreto.
Insira nesse termo de referência sintético a dispensa total dos documentos de habilitação, com fundamento no art. 70, inciso III, da Lei 14.133/2021, à exceção do da certidão da seguridade social e da CNDT. Dispense também o instrumento de contrato, com esteio no art. 95 da Lei 14.133/2021. Este autor acredita (e torce fortemente) que a elaboração de parecer jurídico tenha sido dispensada pela autoridade jurídica máxima no seu órgão público para contratações por dispensa em razão do valor, a exemplo do fez a Advocacia-Geral da União (AGU). Então, dispense o parecer jurídico com base no referido ato da autoridade jurídica máxima, conforme autoriza o art. 53, § 5º, da Lei 14.133/2021.
Ainda no termo de referência, aponte que o pagamento será realizado de forma antecipada, conforme autoriza o art. 145 da Lei 14.133/2021, fundamentando que a presente contratação representa “sensível economia de recursos” administrativos e de custos transacionais, ao se realizar um processo completo de dispensa em razão do valor, em menos de uma hora, o que significará a disponibilidade do objeto para a Administração Pública em poucos dias. Também inclua um tópico determinando que o pagamento se dará por meio de cartão de pagamento, conforme prescreve o art. 75, § 4º, da Lei 14.133/2021.
De posse da especificação do nosso objeto, faça uma pesquisa em um buscador da web, como o Google, em sítios eletrônicos de domínio amplo (leia-se, em sites de lojas conhecidas pela maioria das pessoas), não se esquecendo de incluir o valor do frete. Salve as páginas da web com a data e hora de acesso. Está realizada a pesquisa de preços com base no art. 23, § 1º, inciso III, da Lei 14.133/2021. Em seguida, compre o produto no sítio eletrônico em que constava o menor preço, utilizando o cartão de pagamento. Está finalizado o seu processo.
4. Reflexões sobre o novo
Certamente caberiam debates acerca do fato de a empresa do outro lado não saber que está contratando com o poder público, da impossibilidade de aplicação de sanções, com base na boa-fé objetiva, dentre outros. Mas o nobre leitor deve tentar se desvencilhar da “síndrome de Gabriela”[10] e entender que as contratações públicas estão evoluindo, e que não faz sentido, no nosso caso concreto, utilizar todo esse cabedal administrativo em uma compra de 10 umidificadores. Se o objeto não atender, basta devolvê-lo em sete dias.
Este modo de interpretar e operacionalizar a Nova Lei de Licitações é, inclusive, uma determinação do próprio texto legal, de dispositivo que muitos preferem chamá-lo de “inútil” a procurar os modos de concretizá-lo. Trata-se do art. 40, inciso I, da Lei 14.133/2021. Vejamos:
Art. 40. O planejamento de compras deverá considerar a expectativa de consumo anual e observar o seguinte:
I - condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado;
Observe-se que não são poucos os ganhos em determinadas situações quando a Administração Pública se despe do seu poder extroverso para atuar praticamente em paridade com os demais compradores, quando é possível fazê-lo sem as costumeiras desvantagens que a Administração experimenta e quando não há risco relevante ao interesse público. Há diversos fatores que criam um preço transacional para a Administração Pública: procedimento complexo de compra e habilitação, pagamento tardio, exigências desmedidas, possibilidade de sancionamento. Nesse ponto, é curial lição de Ronny Charles Lopes:
“[...] a identificação do preço envolve diversos fatores, de modo que a estimativa de custos nas licitações, em regra, apresenta apenas um parâmetro (preço de referência), uma baliza do valor potencialmente apresentado pelo mercado, para o órgão/ente contratante. O momento vivenciado no mercado específico, a situação subjetiva do fornecedor (que influencia seu interesse na contratação), situação subjetiva do órgão/ente contratante perante o mercado (como tradicional "pagamento tardio" feito pela Administração ou até a incerteza sobre o adimplemento), além do nível de competitividade do certame e diversos outros fatores, afetam o custo da contratação e não são precisamente apurados na estimativa de custos.
Assim, busca-se com a estimativa de custos um preço referencial, e essa característica deve ser percebida, para que se compreenda o equívoco de fazer-se a comparação irrefletida entre um preço de referência e o preço de uma contratação propriamente dita.”[11]
Se as prerrogativas da Administração Pública nas contratações foram criadas para equilibrar as forças do mercado e proteger o interesse público, a Administração não pode ser sua prisioneira. Ao contrário, quando vantajoso ao mesmo interesse público, o Poder Público deve ter a faculdade de se despir de algumas das suas prerrogativas[12] a fim de alcançar a efetividade. Afinal, não se pode admitir “em nome de uma suposta “indisponibilidade” de um conceito estático e desprovido de análise valorativa do caso concreto de interesse público” sejam “tomadas decisões no âmbito da Administração Pública que afrontam a um conceito axiológico de interesse público e causam o sucateamento da sua própria máquina administrativa”[13].
A Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) nos oferece um vasto arsenal de técnicas para transformar as contratações públicas em processos mais ágeis e eficazes, adequando-as às demandas contemporâneas por eficiência e racionalidade. Ao romper com a rigidez do sistema anterior e centralizar a condução do processo licitatório em um único procedimento, a Lei possibilita a simplificação da gestão pública, sem descurar dos princípios de legalidade, transparência e controle.
As técnicas especiais, quando aplicadas com critério, permitem que um processo de contratação administrativa seja concluído de forma eficiente e rápida. O desafio, contudo, reside na superação do juspositivismo engessado e do "apagão das canetas", que ainda permeiam parte da mentalidade administrativa. O gestor público precisa abandonar o temor da responsabilização e o apego à interpretação literal como única tábua de salvação. Os órgãos de controle necessitam contribuir com a construção desse cenário. Já as assessorias jurídicas necessitam se enxergar menos sob a sua função atípica de controle e mais sob sua função típica de assessoramento ao dar a segurança jurídica necessária para a transição ao novo paradigma.
Ao final, o sucesso na utilização da Lei 14.133/2021 está na capacidade de aplicar suas técnicas com discernimento, equilibrando a necessidade de resultados ágeis com a proteção dos interesses públicos. O novo paradigma, ao oferecer maior autonomia e flexibilidade, confere ao gestor a oportunidade de modernizar as contratações públicas e torná-las mais aderentes às realidades e expectativas da sociedade, sem perder de vista a eficiência, a transparência e a inovação. Parafraseando o cantor Belchior: “o passado é uma roupa que não nos serve mais”.
Autor: Jandeson da Costa Barbosa
Mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Público. Membro da Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União. Pioneiro na utilização da Inteligência Artificial em licitações e contratos. Membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas, do Ceub. Professor de Licitações e Contratos.
NOTAS
[1] BARBOSA, Jandeson da Costa. A possibilidade de prorrogação de contratos administrativos por apostilamento. Conteúdo Jurídico. Brasília-DF: 2019. Disponível em: <https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/53469/a-possibilidade-de-prorrogao-de-contratos-administrativos-por-apostilamento>. Acesso em: 6 out 2024.
[2] Ver: BARBOSA, Jandeson da Costa. Uma teoria hermenêutica para a gestão pública do século XXI. In: Hermenêutica do Direito e processo administrativo: fundamentos do processo administrativo contemporâneo. DEZAN, Sandro Lúcio. CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. GUEDES, Jefferson Carlos Carús (organizadores). Curitiba: CRV, 2021, p. 15-31.
[3] BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional: numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022, p. 165.
[4] SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilidade dos agentes públicos. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 366.
[5] BRAGA, André de Castro O. P. O 'conforto espiritual' do TCU. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/o-conforto-espiritual-do-tcu>. Acesso em 6 out 2024.
[6] BARBOSA, Jandeson da Costa. Nova Lei de Licitações - Extinção Contratual, Machado de Assis e o Presente de Aniversário. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-nov-19/jandenson-barbosa-nllc-extincao-contratual-e-machado-de-assis/>. Acesso em: 6 out 2024.
[7] DIDIER JR, Fredie; e outros. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 100.
[8] Passarei a utilizar o termo "contratações administrativas" para me referir às contratações públicas - sejam efetivadas por licitação, dispensa ou inexigibilidade - realizadas pelo Poder Público sob a égide da Lei 14.133/2021. É uma forma de diferenciá-las das contratações efetivadas pelas empresas estatais, sob a Lei 13.303/2016, empresas essas que, embora tenham personalidade jurídica de direito privado, pertencem à Administração Pública Indireta. Portanto, utilizaremos a classificação - possivelmente inédita - segundo a qual "contratações públicas" é gênero do qual são espécies as "contratações administrativas" (regidas pelas Lei 14.133/2021) e as "contratações das estatais" (regidas pela Lei 13.303/2016 primordialmente), dentre outras.
[9] Sobre o assunto, ver: BARBOSA, Jandeson da Costa. Fase de Planejamento da Contratação com Apoio da Inteligência Artificial. 2. ed. Natal: Editora Virtú. 2024.
[10] BARBOSA, Jandeson da Costa. Nova lei de licitações, marketplace público, o rei, Caetano e outras reflexões. Disponível em: <https://ronnycharles.com.br/wp-content/uploads/2023/10/Nova-lei-de-licitacoes-marketplace-publico-o-rei-Caetano-e-outras-reflexoes.pdf>. Acesso em: 6 out 2024.
[11] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 14.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024, p. 204.
[12] Defendemos, em outro artigo, a possibilidade de a Administração Pública renunciar à possibilidade de “extinção de aniversário sem ônus” do contrato administrativo, quando houver conveniência e oportunidade. Ver: BARBOSA, Jandeson da Costa. Nova Lei de Licitações - Extinção Contratual, Machado de Assis e o Presente de Aniversário. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-nov-19/jandenson-barbosa-nllc-extincao-contratual-e-machado-de-assis/>. Acesso em: 6 out 2024.
[13] BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional: numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022, p. 166.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Jandeson da Costa. Fase de Planejamento da Contratação com Apoio da Inteligência Artificial. 2. ed. Natal: Editora Virtú. 2024.
____________. O interesse público constitucional: numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.
____________. A possibilidade de prorrogação de contratos administrativos por apostilamento. Conteúdo Jurídico. Brasília-DF: 2019. Disponível em: <https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/53469/a-possibilidade-de-prorrogao-de-contratos-administrativos-por-apostilamento>. Acesso em: 6 out 2024.
____________. Uma teoria hermenêutica para a gestão pública do século XXI. In: Hermenêutica do Direito e processo administrativo: fundamentos do processo administrativo contemporâneo. DEZAN, Sandro Lúcio. CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. GUEDES, Jefferson Carlos Carús (organizadores). Curitiba: CRV, 2021.
____________. Fase de Planejamento da Contratação com Apoio da Inteligência Artificial. 2. ed. Natal: Editora Virtú. 2024.
____________. Nova Lei de Licitações - Extinção Contratual, Machado de Assis e o Presente de Aniversário. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-nov-19/jandenson-barbosa-nllc-extincao-contratual-e-machado-de-assis/>. Acesso em: 6 out 2024.
BRAGA, André de Castro O. P. O 'conforto espiritual' do TCU. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/o-conforto-espiritual-do-tcu>. Acesso em 6 out 2024.
DIDIER JR, Fredie; e outros. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais. Salvador: Editora Juspodivm, 2018.
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 14.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024.
SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilidade dos agentes públicos. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.