Por que o credenciamento é uma hipótese de inexigibilidade de licitação

O texto defende que o credenciamento é, por definição, hipótese de inexigibilidade porque a “inviabilidade de competição” não se restringe à ausência de concorrentes, mas também abrange situações em que a disputa excludente é inútil ou contraproducente para o interesse público em mercados complexos e dinâmicos. À luz da Lei 14.133/2021, o instituto é definido (art. 6º, XLIII), enquadrado como inexigibilidade (art. 74, IV) e operacionalizado como procedimento auxiliar (arts. 78 e 79), com três arranjos: paralelo e não excludente (todos os aptos podem ser chamados segundo critérios objetivos), escolha a critério de terceiro (o beneficiário escolhe entre credenciados) e mercado fluido (preços oscilantes inviabilizam a “fotografia” licitatória tradicional). A adoção legítima exige motivação circunstanciada, demonstração de vantajosidade, critérios impessoais, isonomia material, governança de filas e remuneração pré-definida. A jurisprudência do TCU corrobora o uso — inclusive com ordenação por pontuação objetiva e planejamento de múltiplas contratações — enquanto o controle externo deve aferir finalidade, motivação e forma, sem substituir o juízo de conveniência. Conclui-se que o credenciamento não contorna a licitação, mas a aperfeiçoa quando desloca a competição para a execução, amplia a rede de prestadores e entrega mais valor público com transparência e eficiência.

INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃOCREDENCIAMENTO

Jandeson da Costa Barbosa

8/11/202529 min read

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Por que o credenciamento é uma hipótese de inexigibilidade de licitação

Jandeson da Costa Barbosa

Pioneiro na utilização de IA em Licitações e Contratos. Mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Público. Membro da Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União (TCU). Professor de Licitações e Contratos. Advogado.

Introdução

Qualquer estudante de contratações públicas aprende que, por mandamento constitucional, a regra é a realização de licitação, sendo a contratação direta uma exceção. E, de fato, esse é o cenário esculpido pelo art. 37, inciso XXI, da Constituição da República. Essa é, portanto, a didática apropriada para o ensino acadêmico e conceitual do tema. É a conclusão óbvia e adequada para o início dos estudos de contratações públicas.

Agora, se o estudante desejar se aprofundar na compreensão do tema, logo perceberá que a conclusão acima é deveras superficial. E é superficial no sentido literal, daquilo que é visto na superfície, que é verificável de imediato. Mas o discente não deve descurar de compreender que o aprofundamento do assunto exigirá dele uma compreensão ampliada de direito administrativo, claro, mas também de economia, de gestão, dentre outros.

Sem isso, o estudante corre o risco de se converter em um “ditador do óbvio”, no sentido de alguém que obsta a aplicação de teses sofisticadas e corretas, necessárias ao desenvolvimento das contratações públicas, baseando-se em meros jargões e frases prontas que, além de esboçar o óbvio, não representam qualquer óbice à tese criticada. Como esse não é o caso do nobre leitor, convém aprofundar no entendimento do que é uma inexigibilidade de licitação, para além da leitura do texto legal – que é indispensável – mas é pouco.

Inexigibilidade de licitação

Inicialmente, é indispensável compreender que o conceito de inviabilidade de competição, fundamento central da inexigibilidade de licitação, não permaneceu estático desde a promulgação da Lei nº 8.666/1993. E engana-se quem imagina que a principal mudança na comparação entre o instituto de hoje e o do início da década de 1990 é o diploma legal. A ampliação do conceito de inviabilidade se deu de forma gradual, muito mais em função do contexto comercial, econômico, tecnológico e social do que da publicação da Lei 14.133/2021. Não à toa, o fato do o rol de hipóteses ser exemplificativo vocaciona o instituto a albergar o dinamismo do seu conceito.

À época da publicação da Lei 8.666/1993, o mercado brasileiro se apresentava com estrutura econômica e relações comerciais relativamente simples, em perspectiva com os dias atuais, permitindo que a ideia de inviabilidade de competição estivesse frequentemente associada à exclusividade absoluta do fornecedor ou à evidente singularidade artística ou técnica de determinados objetos. Jacoby Fernandes lembra que, já em 1994, Lúcia Valle Figueiredo e Sérgio Ferraz sustentavam “com acerto, que a inviabilidade pode se impor quer pela natureza específica do negócio, quer pelos objetivos sociais visados pela Administração”[1].

Um dos precedentes mais paradigmáticos sobre o tema veio justamente do Tribunal de Contas da União já nos idos de 1998. Em julgado histórico, de lavra do saudoso Ministro Adhemar Ghisi, aquela Corte de Contas entendeu que a inexigibilidade de licitação para a contratação de docentes e matrículas em cursos decorre da impossibilidade de comparação objetiva entre os profissionais. Sua tese central permanece incólume até hoje. Vejamos:

“[Voto]

9. A aplicação da lei deve ser compatível com a realidade em que está inserida, só assim o direito atinge seus fins de assegurar a justiça e a equidade social. Nesse sentido, defendo o posicionamento de que a inexigibilidade de licitação, na atual realidade brasileira, estende-se a todos os cursos de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, fato que pode e deve evoluir no ritmo das mudanças que certamente ocorrerão no mercado, com o aperfeiçoamento das técnicas de elaboração de manuais padronizados de ensino. Essa evolução deve ser acompanhada tanto pelos gestores como pelos órgãos de controle, no âmbito de suas atuações. Assim, desponta, a meu ver, com clareza que a inexigibilidade de licitação para contratação de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, na atualidade, é regra geral, sendo a licitação exceção que deve ser averiguada caso a caso pelo administrador.

10. Destarte, partilho do entendimento esboçado pelo Ministro Carlos Átila no sentido do reconhecimento de que há necessidade de assegurar ao Administrador ampla margem de discricionariedade para escolher e contratar professores ou instrutores. Discricionariedade essa que deve aliar a necessidade administrativa à qualidade perseguida, nunca a simples vontade do administrador. Pois, as contratações devem ser, mais do que nunca, bem lastreadas, pois não haverá como imputar à legislação, a culpa pelo insucesso das ações de treinamento do órgão sob sua responsabilidade.

[...]

[Decisão]

O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE: 1. considerar que as contratações de professores, conferencistas ou instrutores para ministrar cursos de treinamento ou aperfeiçoamento de pessoal, bem como a inscrição de servidores para participação de cursos abertos a terceiros, enquadram-se na hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso II do art. 25, combinado com o inciso VI do art. 13 da Lei nº 8.666/93;”[2]

Passadas três décadas, a sociedade experimentou profundas transformações, tornando-se mais complexa e sofisticada, especialmente pela intensa globalização, pelo avanço tecnológico acelerado e pela emergência de modelos comerciais altamente especializados. Essas mudanças resultaram em um ambiente de mercado marcado pela diferenciação, especialização e singularidade qualitativa, onde nem sempre é possível estabelecer parâmetros claros ou diretos de comparação entre produtos ou serviços, de modo a viabilizar uma disputa isonômica e objetiva.

Paralelamente, a Administração Pública também evoluiu, tornando-se mais rigorosa em termos de governança, gestão de riscos e eficiência administrativa, demandando bens e serviços cada vez mais especializados, complexos e personalizados, cuja contratação não é possível por métodos competitivos tradicionais. A efetividade das compras públicas, traduzida na efetividade das próprias políticas públicas para as quais as compras ocorrem, passa gradualmente a ter mais importância que a mera conformidade formal, e vem sendo acompanhada de perto cada vez mais pelos órgãos de controle.

Nesse contexto contemporâneo, a inviabilidade de competição deixa de significar apenas ausência literal de concorrentes, passando a incluir situações nas quais a competição, embora teoricamente possível, revela-se inviável na prática devido à singularidade técnica, econômica ou operacional do objeto contratado.

Essa evolução conceitual já é reconhecida pela doutrina especializada e pela jurisprudência do TCU, refletindo-se em precedentes mais antigos e recentes, que interpretam a inexigibilidade como hipótese dinâmica e multifacetada, adequada à complexidade atual das relações comerciais e à sofisticação das demandas da Administração Pública. É nesse sentido que leciona Ronny Charles Torres:

“Nessa feita, competição inviável, para fins de aplicação da hipótese de inexigibilidade licitatória, não ocorreria apenas nas situações em que é impossível haver disputa, mas também naquelas em que a disputa é inútil ou prejudicial ao atendimento da pretensão contratual, pelo confronto e contradição com aquilo que a justifica (o interesse público).”[3]

Em acréscimo, é útil observar que a utilização, pelo legislador, do vocábulo “inviabilidade”, ao invés de “impossibilidade” certamente contribuiu para a evolução do conceito, visto que a própria literalidade do termo dá espaço, ainda que reduzido, para a análise de conveniência e oportunidade – sempre sob a ótica do interesse público – para se verificar se a competição, ainda que possível, não possa ser viável sob determinados aspectos.

Credenciamento como hipótese de inexigibilidade de licitação

O credenciamento representa possivelmente uma das mais arrojadas utilizações do conceito alargado de inexigibilidade de licitação. O art. 6º, inciso XLIII, da Lei 14.133/2021 o define como “processo administrativo de chamamento público em que a Administração Pública convoca interessados em prestar serviços ou fornecer bens para que, preenchidos os requisitos necessários, credenciem-se no órgão ou na entidade para executar o objeto quando convocados”.

A fim de ampliar a compreensão do instituto, conceituamos o credenciamento como “procedimento administrativo de contratação pública por inexigibilidade de licitação, no qual a Administração Pública, diante do cenário fático, decide que é conveniente e oportuno, ante o interesse público constitucional, realizar a contratação por meio de modelagem de contratação de fornecedores previamente cadastrados, para executarem, cada um, parcelas do objeto total”[4].

É necessária bastante acuidade investigativa para perceber que, na prática, o credenciamento tem uma inviabilidade de competição criada artificialmente por meio de uma decisão do administrador público. E tudo de forma legítima, juridicamente possível e tecnicamente desejada. Exemplificaremos esse ponto para, em seguida, explicar.

Imagine uma cidade que tenha diversas clínicas de exames laboratoriais. Considerando o objeto (exames laboratoriais), sua natureza objetiva (comparável), os sujeitos (as clínicas), e a possibilidade de oferta diversificada de preços, temos um contexto em que a competição é perfeitamente viável. Uma licitação, nos moldes normais, daria cabo de selecionar a empresa que ofertasse o menor preço.

Nesse ponto cabe recordar que o administrador público está vestido do seu poder-dever (ou dever-poder) de analisar o contexto fático e tomar decisões acerca da conveniência e oportunidade – sempre pautadas pelo interesse público. Esse administrador, no exercício legítimo de suas competências, pode decidir ser conveniente que todas as clínicas (ou o máximo de clínicas possível) prestem esse serviço à Administração. Não se olvida a necessidade de motivação: no caso, possibilitar que o cidadão que realizará os exames escolha a clínica segundo a sua conveniência. Mas é a decisão do administrador que transforma o cenário e produz – artificial e legitimamente – a inviabilidade de competição.

Desse modo, o credenciamento reflete uma situação peculiar em que o próprio administrador público, com base em uma análise cuidadosa das circunstâncias concretas e considerando especialmente o interesse público, opta por ampliar ao máximo o número de prestadores habilitados para realizar determinado serviço ou entregar determinado bem. Com isso, o gestor abandona intencionalmente o modelo clássico de competição — que pressupõe a escolha de um único fornecedor — para instaurar um regime aberto e plural de credenciamento, no qual diversos interessados possam ingressar, desde que preencham os requisitos técnicos, jurídicos e econômicos estabelecidos previamente pela Administração.

O resultado prático dessa decisão legítima do administrador é a criação de uma situação de inviabilidade competitiva no sentido tradicional, pois desaparece o critério objetivo de seleção com base em preço ou outro fator competitivo exclusivo. A inviabilidade, portanto, não decorre mais da ausência de alternativas no mercado, mas da própria opção administrativa de garantir diversidade e ampla disponibilidade do serviço, com vistas a assegurar ao usuário final (cidadão) uma maior liberdade de escolha. Esse tema já foi por nós apontado em outro trabalho:

“É, pois, o motivo da ‘conveniência e oportunidade’ acolhido pela Administração Pública que torna a licitação inexigível. É dizer que a ‘expressão ‘inviabilidade de competição’ indica situações em que não se encontram presentes os pressupostos para a escolha objetiva da proposta mais vantajosa’. Isso porque ‘a inviabilidade tem como referência não apenas a competição, enquanto procedimento formal, mas enquanto instrumento de atendimento do interesse público, motivo pelo qual é inexigível uma licitação cuja obrigatoriedade o contrarie’.”[5]

Essa compreensão alargada de inexigibilidade de licitação encontra pleno respaldo no nosso ordenamento jurídico e na jurisprudência consolidada do Tribunal de Contas da União (TCU), desde que a escolha seja devidamente motivada e respaldada no interesse público. Nessa senda, o Ministro Benjamin Zymler redigiu voto bastante didático em julgamento no TCU: “O credenciamento tradicional é um processo administrativo de chamamento de interessados quando, em vez de se ter um vitorioso na licitação – aquele que assinará o contrato –, a Administração se vê diante de uma situação concreta em que ela pode ‘dividir um bolo em fatias’ e distribuí-las de forma objetiva”. E, em irretocável exegese, conclui: “Logo, não há competição porque todos, de algum modo, serão contratados para executar uma parte do objeto”.[6]

Assim, o credenciamento exemplifica precisamente como o conceito contemporâneo de inexigibilidade pode ser aplicado de forma mais dinâmica e adequada à realidade complexa e multifacetada das contratações públicas atuais, rompendo com a lógica rígida tradicional e conferindo maior flexibilidade ao gestor na concretização dos interesses públicos legítimos e justificados pela Administração. Ademais, o texto legal já assevera, no art. 74, inciso IV, da Lei 14.133/2021, que é hipótese de inexigibilidade de licitação a contratação de “objetos que devam ou possam ser contratados por meio de credenciamento”. O dispositivo é bastante claro: haverá inexigibilidade não apenas para a contratação dos objetos que “devam”, mas também aqueles que “possam” ser contratados por credenciamento.

Imperioso lembrar que essa formatação foi chancelada pelo Tribunal de Contas da União ainda sob a égide da Lei 8.666/1993, mesmo sem qualquer previsão legal nesse sentido. O Tribunal teve a sensibilidade e sensatez de perceber que o ambiente das contratações públicas é dinâmico, e que o texto legal é o piso, e não o teto, e é a partir desse piso que serão construídas as transformações que os cidadãos e o nosso país necessitam. Vejamos:

“Embora não esteja previsto nos incisos do art. 25 da Lei 8.666/1993, admite-se o credenciamento como hipótese de inexigibilidade inserida no caput do referido dispositivo legal, porquanto a inviabilidade de competição configura-se pelo fato de a Administração dispor-se a contratar todos os que tiverem interesse e que satisfaçam as condições por ela estabelecidas, não havendo, portanto, relação de exclusão. Para a regularidade da contratação direta, é indispensável a garantia da igualdade de condições entre todos os interessados hábeis a contratar com a Administração, pelo preço por ela definido.”[7]

No exemplo acima, restou demonstrada como se dá inviabilidade de competição no credenciamento com escolha a critério de terceiro (art. 79, II, da Lei 14.133/2021). Na hipótese da contratação paralela e não excludente (art. 79, I, da Lei 14.133/2021), a inviabilidade decorre da própria decisão administrativa de contratar todos os prestadores que atendam aos requisitos previamente fixados. Aqui, a Administração Pública realiza uma avaliação prévia e estabelece critérios objetivos mínimos de habilitação. Ao invés de selecionar apenas um ou alguns poucos fornecedores, opta por permitir o ingresso simultâneo e ilimitado daqueles que preencham as condições estipuladas.

No tocante à hipótese de credenciamento por mercado fluido (art. 79, III, da Lei 14.133/2021), a inviabilidade decorre diretamente das características do mercado em que o objeto está inserido. Trata-se de um ambiente econômico dinâmico, em que os preços variam frequentemente, tornando a competição inviável sob o modelo tradicional.

Especificamente quanto à hipótese de credenciamento paralelo e não excludente prevista no art. 79, inciso I, da Lei nº 14.133/2021, observa-se que seu fundamento central reside na contratação simultânea de múltiplos prestadores que possam, em regime de igualdade técnica e operacional, oferecer determinado serviço à Administração, permitindo aos usuários ou beneficiários do serviço público ampla liberdade de escolha entre diversos prestadores previamente habilitados.

A escolha do motivo imediato a fundamentar essa decisão da Administração pela contratação paralela e não excludente é prerrogativa do administrador público. Assim, os órgãos que exercem o controle externo da Administração Pública não podem adentrar no mérito administrativo, sob pena de inconstitucional usurpação de competência. Ao controle é cabível investigar se o ato tem como motivo mediato o interesse público e, excepcionalmente, a razoabilidade do motivo imediato, a fim de combater situações esdrúxulas. É claro que haverá, também, o controle em relação aos elementos competência, finalidade e forma, que permanecem vinculados mesmo nos atos discricionários. Vejamos exemplificação desenvolvida por este autor em outro trabalho:

“A título de exemplo, imagine-se que a Administração Pública pretenda adquirir uniformes escolares para as escolas da rede pública de ensino. No novo paradigma do menu de opções, o administrador público pode de maneira legítima, presentes os pressupostos fáticos, escolher entre: a realização de uma licitação para a compra de um só fornecedor, na qual possivelmente será verificado preço ligeiramente menor em decorrência da economia de escala, além de maior padronização; ou, realizar o credenciamento de pessoas físicas e Microempreendedores Individuais (MEI) para gerar emprego e renda e fomentar a economia local. Em ambos os casos, haveria respaldo axiológico-normativo a possibilitar o exercício do poder discricionário da Administração, em legítimo exercício democrático e republicano.

Aos órgãos de controle – nesses incluída a atuação do Judiciário – resta perquirir se há vício de finalidade ou de forma. Na análise do elemento finalidade, pode-se questionar se há o atingimento do interesse público (constitucional), o que, no exemplo, é verificado em ambas as hipóteses. Já quanto à forma, pode-se avaliar se a motivação (exteriorização do motivo, que está contida no elemento “forma”) é adequada e suficiente, ou seja, se o administrador público exerceu de modo suficiente o seu ônus argumentativo. Em sendo ambas as possibilidades sendo albergadas pela moldura constitucional-legal, não podem os órgãos de controle questionar o “motivo” do ato, sob pena de inconstitucional violação à separação dos poderes.”[8]

Nessa trilha, o processo que culminou no Acórdão 533/2022-TCU-Plenário foi palco de interessante debate entre o relator, Ministro Antonio Anastasia, e a área técnica do Tribunal. O processo tratou de credenciamento realizado ainda sob a égide da Lei 8.666/1993, em que se questionava alegalidade do modelo de contratação de escritórios de advocacia via credenciamento, por não estar previsto na Lei 8.666/1993”.

Além do cansativo argumento da falta de previsão legal, em que sempre se quer punir o legislador com o “castigo de Sísifo”[9], o assunto que nos interessa na análise do julgado é, precisamente, a possibilidade de “utilização de pontuação para fins de distinção classificatória entre as empresas credenciadas”. A unidade técnica do Tribunal, estranhamente, defendeu que “se não for possível contratar todos de uma vez, o chamamento deve ser feito, por exemplo, por meio de sorteio ou de outro critério que não envolva uma ordem baseada em pontuação, para que não se caracterize uma contratação direta indevida”.[10]

Em outras palavras, a unidade técnica defendeu que, em caso de haver uma demanda inicial inferior ao número de credenciados, seria melhor realizar um sorteio para escolher os credenciados que seriam contratados primeiro, em detrimento da utilização de pontuação que levasse a Administração a contratar primeiro as empresas que “atenderiam melhor” ao objeto.

Felizmente, o relator discordou da unidade técnica. Vejamos trecho de seu voto:

“32. Com as vênias de estilo, vejo a questão sob prisma distinto.

33. O risco de quebra de isonomia aventado pela unidade técnica ocorreria se os credenciados fossem preteridos na ordem de contratação sem razão justa ou com base em critérios subjetivos.

[...]

36. Curioso notar que, nesse precedente, o questionamento era precisamente o inverso, qual seja, a falta de critérios de pontuação para guiar a ordem de contratação, sendo o ponto elidido porque a isonomia seria garantida pela expectativa de contratação de todos os credenciados, o que compensaria a falha assinalada.

37. Por outro lado, neste mesmo processo, já foi decidida como regular a formação de cadastro de reserva com base no credenciamento sob exame, o que afastou, no caso concreto, a obrigação de o Banco contratar todos os habilitados. Isso foi evidenciado no Acórdão 532/2015-TCU-Plenário (relator: Ministro José Múcio Monteiro), cujos fundamentos foram transcritos no parágrafo 13, no que tange ao ponto em questão, entre os quais repriso a seguinte passagem:

16. (...) há outras duas conclusões que estão claras: a urgência em se encontrar uma forma de contratar distinta da utilizada nos dias atuais; e a percepção de que o novo modelo poderia, de fato, trazer benefícios reais à eficiência da atuação dos escritórios de advocacia terceirizados na defesa dos interesses do banco. Creio que a restrição da quantidade de ajustes, com a classificação por critérios objetivos, bem como a adoção de cadastro de reserva, tendem a atrair prestadores mais qualificados. (Grifei).

38. À luz dessas ponderações, é plenamente consentâneo com o interesse público assegurar um critério objetivo para definir quem terá preferência nas contratações decorrentes do credenciamento em foco.

39. E, neste ponto, com todas as vênias, rejeito a tese da unidade técnica de que o sorteio seria a melhor solução. Isso porque a escolha aleatória, via sorteio, do contratado, quando existe um conjunto de critérios para definir, entre os habilitados, quais atendem melhor, com mais eficiência e qualidade, as necessidades da Administração, colide não apenas com o princípio da isonomia - que também impõe tratar desigualmente os desiguais -, mas também, e principalmente, com o princípio de seleção da melhor proposta, regente das contratações públicas. Contratar o melhor qualificado converge para a avença mais vantajosa.”[11]

O voto do Ministro foi acompanhado pela unanimidade do colegiado, que assim decidiu:

Não viola o princípio da isonomia a utilização de critérios técnicos objetivos, mediante pontuação, para definir preferência em contratações decorrentes de credenciamento.[12]

O TCU possui, dentre diversos julgados sobre o tema, outro importante precedente a demonstrar que a inexigibilidade, nesses casos, decorre da análise de vantajosidade realizada pela Administração acerca da escolha do modelo de contratação paralela e não excludente. Esse acórdão aponta que o uso do credenciamento é, sim, legítimo quando a Administração “planeja” realizar múltiplas contratações. Aponta, inclusive, que essa escolha pode ocorrer quando, mesmo não sendo a única viável, ela “é mais vantajosa do que outras alternativas para atendimento das finalidades almejadas”. Trata-se do Acórdão 2977/2021-TCU-Plenário. Vejamos:

“O credenciamento é legítimo quando a administração planeja a realização de múltiplas contratações de um mesmo tipo de objeto, em determinado período, e demonstra que a opção por dispor da maior rede possível de fornecedores para contratação direta, sob condições uniformes e predefinidas, é a única viável ou é mais vantajosa do que outras alternativas para atendimento das finalidades almejadas, tais como licitação única ou múltiplas licitações, obrigando-se a contratar todos os interessados que satisfaçam os requisitos de habilitação e que venham a ser selecionados segundo procedimento objetivo e impessoal, a serem remunerados na forma estipulada no edital.”[13]

Noutro giro, no que diz respeito à hipótese de credenciamento com escolha a critério de terceiro, prevista no inciso II do artigo 79 da Lei nº 14.133/2021, é essencial compreender que essa modalidade pressupõe uma situação concreta na qual o beneficiário final do serviço, e não a Administração Pública, é quem possui legitimidade para escolher diretamente, dentre os prestadores credenciados, aquele que melhor atenda às suas necessidades ou preferências específicas.

Essa condicionante óbvia decorre da própria razão de ser da hipótese. É da não observância desses requisitos fundantes – porque fundam, fazem nascer a hipótese de inexigibilidade – que surge casos jocosos como aquele em que um consórcio municipal realizou um credenciamento de médicos com escolha a critério de “terceiros”, que, nesse caso, eram os próprios municípios consorciados.[14] Para que essa hipótese seja aplicável, é preciso que o objeto envolva algum grau de subjetividade ou preferência pessoal por parte desse terceiro beneficiário.

Por fim, temos a hipótese prevista no inciso III do art. 79 da Lei nº 14.133/2021 (credenciamento por mercado fluido). O legislador, ao estabelecer essa hipótese, visou situações em que os preços são dinâmicos, com variações constantes e imprevisíveis, em mercados que impedem a fixação prévia de valores objetivos e estáveis. Trata-se, portanto, de mecanismo apropriado para contratações em que o preço do bem ou serviço sofre alterações frequentes, como ocorre, por exemplo, em passagens aéreas ou serviços que envolvam oscilações contínuas de mercado.

Aqui cabe mencionar que o conceito de “mercado fluido” não pertence ao direito, e, seguramente, envolve certo grau de subjetividade a partir da análise do perfil do órgão que contrata, e não apenas do objeto em si. Sobre o tema, Christianne Stroppa e Tatiana Camarão narraram interessante crônica:

“Recentemente, conversando com outros colegas interessados no modelo de Belo Horizonte, quando explicado esse racional de comprovação da fluidez do mercado de material de construção, um colega disse: ‘Olha, da maneira como vocês colocam, tudo é mercado fluido!’ Ao que lhe foi respondido: ‘Bom argumento, comprove-o!’”[15]

Este autor complementaria humildemente a resposta-pergunta empreendida pelas celebradas autoras indagando: “E qual é o problema?”. Esse é um caso “diagnosticável” com o que este autor chama de “síndrome do inspetor Javert”, aquele personagem de Os Miseráveis (Victor Hugo) que persegue o coitado do protagonista, Jean Valjean, acreditando fazê-lo por “amor à lei”. É bastante comum entre alguns servidores públicos que, com o passar do tempo, acabam por acreditar que sua missão é fazer cumprir a letra fria e estática do texto legal, em interpretação dissociada com a finalidade da Administração Pública.

Se a Lei 14.133/2021 “distribui desafios a todos: acadêmicos, administradores e servidores públicos, juristas, agentes do mercado, agentes dos órgãos de controle”[16], merece menção elogiosa o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, que aponta a possibilidade de ampla utilização do credenciamento por mercados fluidos para compra de uma gama de produtos, mediante a demonstração de vantajosidade para a Administração. Vejamos:

“CONSULTA. PREFEITURA MUNICIPAL. PRELIMINAR. ADMISSIBILIDADE PARCIAL . ART. 210-B, IV, DO RITCEMG. IMPRECISÃO DE PARTE DAS INDAGAÇÕES. MÉRITO. NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS. CREDENCIAMENTO. CONTRATAÇÃO DE BENS COMUNS. NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA ÀS EXIGÊNCIAS LEGAIS E JUSTIFICATIVA . DEMONSTRAÇÃO DA VANTAJOSIDADE. POSSIBILIDADE. RESSALVAS. Ressalvadas as especificidades aplicáveis a cada espécie, ainda que pendente de regulamentação, é possível a utilização do credenciamento fundado no inciso III do art . 79 da Lei n. 14.133/21 para a contratação de bens comuns tais como medicamentos, material hospitalar, gêneros alimentícios, material de construção, peças e acessórios para veículos automotores e combustíveis, desde que as circunstâncias de aquisição se amoldem às exigências legais e sejam devidamente justificadas, demonstrando-se a vantajosidade do credenciamento para a Administração. Ressalva-se, porém, que a aquisição de medicamentos é regida por normas próprias, e que a manutenção de veículos automotores, incluído o fornecimento de peças, pode ser realizada por contratação direta por meio de dispensa em razão do valor, nos termos do art . 75, I c/c § 7º, da citada Lei.”[17]

Esse “giro hermenêutico” não implica pouco avanço. Para enriquecer o debate, transcrevemos abaixo trecho de outro trabalho que julgamos necessário:

“O que todos esses trechos – do Brasil Império à NLLCA – têm em comum? O modelo direcional de contratação pública: a Administração publica um edital ou instrumento qualquer de chamamento descrevendo minunciosamente o que pretende adquirir e os fornecedores enviam propostas dos seus produtos.

O Império publicava annuncios, a República Velha o fazia por meio de Diario Official ou jornaes officiaes, o Regime Militar, no órgão oficial e na imprensa diária, a Nova República realizava a publicação dos resumos dos editais na imprensa oficial e em jornal de grande circulação (a Lei do Pregão não mudou, nesse aspecto, muita coisa), e enviava suas cartas-convite. Por fim, a NLLCA determina a publicação de editais no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e... em diário oficial e jornal de grande circulação.”[18]

É por todo o exposto que o credenciamento se mostra, de fato, como interessante hipótese de inexigibilidade de licitação, com potencial de destravar o avanço do modelo brasileiro das compras públicas, que permanece, na essência, o mesmo do Brasil Império.

Procedimento auxiliar

É certo que a publicação da Lei 14.133/2021 impôs desafios interpretativos a todos os agentes envolvidos no universo das contratações públicas. É também certo que, de tempos em tempos, somos surpreendidos com algumas discussões que, com a devida vênia, não gozam de razão de existir, quase não têm na aplicação do dia a dia da Administração e, por vezes, trata-se apenas da incompreensão de alguns institutos.

Isso é precisamente o que ocorre com o “debate” acerca da natureza do credenciamento. Da lista de pérolas, é possível ouvir que “o credenciamento não é uma hipótese de inexigibilidade de licitação”, ou, ainda, “o credenciamento hipótese de inexigibilidade é uma coisa, e o credenciamento procedimento auxiliar é outra”.

Possivelmente, o motivo da confusão é, além do não entendimento acerca da razão de o credenciamento ser hipótese de inexigibilidade de licitação (já esclarecido acima), o fato de estar previsto, também, no rol de procedimentos auxiliares, no art. 78 da Lei 14.133/2021. A dupla previsão não é um problema, mas tem gerado dúvidas e certa celeuma.

Primeiramente, cabe mencionar que, conforme dicção do art. 78 citado, os instrumentos ali listados são auxiliares não apenas das licitações, mas das contratações em geral: “São procedimentos auxiliares das licitações e das contratações regidas por esta Lei”. Desse modo, não há qualquer incompatibilidade entre esses institutos e a inexigibilidade de licitação. Inclusive, em determinados casos, prescreve o art. 82, § 6º, da Lei 14.133/2021, que pode ser celebrada Ata de Registro de Preços a partir de inexigibilidade e de dispensa de licitação.

Já explicamos no início deste trabalho que o credenciamento ocorre porque, com a formatação da contratação, torna-se inviável a competição, por ser esta desvantajosa. A publicação do edital de credenciamento, bem como a gestão da relação de credenciados, é a operacionalização desse “instrumento auxiliar”. Ocorre que esse procedimento está contido na instrução necessária para a celebração da inexigibilidade de licitação descrita no art. 74, inciso IV, da Lei 14.133/2021: “objetos que devam ou possam ser contratados por meio de credenciamento”.

Em outras palavras, o procedimento previsto no art. 79 da Lei 14.133/2021 é conditio sine qua non para que possa ser realizada a inexigibilidade de licitação dos “objetos que devam ou possam ser contratados por meio de credenciamento”. É óbvio que, ao credenciar uma empresa, o órgão público não está celebrando ali uma inexigibilidade. Da mesma forma que, ao realizar o procedimento da malfadada “dispensa eletrônica”[19], a Administração não está realizando, naquele ato, a dispensa de licitação.

De igual modo, quando a Administração Pública solicita proposta de diferentes artistas consagrados por meio de empresário exclusivo, não está celebrada já naquele momento a inexigibilidade do art. 74, inciso II, da Lei 14.133/2021. Assim, o “procedimento auxiliar” do credenciamento está obrigatoriamente contido na instrução processual necessária para se ultimar a inexigibilidade de licitação de “objetos que devam ou possam ser contratados por meio de credenciamento”. Não há razão ou utilidade para pensá-los de modo dissociado.

Também não há muito sentido no debate segundo o qual o credenciamento seria ou não um contrato. Ora, o credenciamento é forma de seleção do fornecedor da mesma forma que é a licitação ou qualquer outra hipótese de dispensa e inexigibilidade. Em nenhum desses casos a escolha do fornecedor representa celebração de contrato administrativo. Esta ocorrerá, se for o caso, posteriormente, através da assinatura de instrumento de contrato ou utilização de seus documentos substitutivos, nas hipóteses do art. 95 da Lei 14.133/2021.

Conclusão

Concluir este ensaio é, antes de tudo, devolver a inexigibilidade ao seu lugar correto: não o da exceção que fragiliza a regra, mas o da técnica que aperfeiçoa a própria finalidade do regime licitatório — selecionar, com probidade e eficiência, a melhor forma de atender ao interesse público. Sob essa lente, o credenciamento não é um corpo estranho no sistema; é uma das expressões mais maduras da noção contemporânea de “inviabilidade de competição”, entendida não como impossibilidade física de disputar, mas como inutilidade ou inadequação do rito competitivo para a finalidade buscada.

O núcleo racional é simples e robusto: quando a Administração, motivadamente, decide ampliar a rede de prestadores sob condições uniformes e objetivas, ou permitir que o beneficiário final escolha entre credenciados, ou ainda operar em mercados de preço mutável, ela desloca o eixo da “competição pelo contrato” para a “competição no contrato”. Em vez de excluir fornecedores para selecionar um único vencedor, inclui vários, padroniza premissas, distribui a execução e preserva a isonomia material — aquela que trata desigualmente os desiguais na medida de suas diferenças. A licitação, nesse contexto, deixaria de ser o melhor instrumento: não há como comparar propostas excludentes quando a solução mais vantajosa é, precisamente, abrir a prestação a muitos, de modo contínuo e impessoal. Eis por que o credenciamento é, por definição, hipótese de inexigibilidade.

As três janelas do art. 79 da Lei nº 14.133/2021 apenas densificam essa lógica. No modelo paralelo e não excludente (inciso I), a inviabilidade decorre da própria arquitetura decisória: todos os aptos serão chamados, segundo critérios objetivos, até a saturação da necessidade. Na escolha a critério de terceiro (inciso II), a inviabilidade emerge da titularidade legítima da preferência de quem usufrui o serviço – o que torna inútil submeter a uma disputa centralizada aquilo que é, por natureza, descentralizado na fruição. No mercado fluido (inciso III), a inviabilidade é econômica: preços que oscilam em janelas curtas tornam estéril a fotografia de uma licitação tradicional. Em todas elas, o fio condutor é o mesmo: a Administração motiva, demonstra vantajosidade, fixa condições uniformes e abre as portas a todos os que as cumprirem.

Repare-se, ademais, que a dupla previsão do credenciamento como hipótese de inexigibilidade (art. 74, IV) e como procedimento auxiliar (arts. 78 e 79) não é paradoxal — é coerente. A “hipótese” confere o enquadramento jurídico-material (a causa que torna inexigível a competição excludente); o “procedimento” fornece a trilha operacional (o como credenciar, gerir filas e distribuir demandas). Forma e substância, aqui, não se repelem; se completam. Sem o procedimento, não há como materializar a inexigibilidade; sem a inexigibilidade, o procedimento seria um rito sem função.

Não se confunda, entretanto, maturidade com licença. O credenciamento não é válvula de escape para contornar a licitação quando ela é útil e possível; é ponte técnica para alcançar, com mais eficiência, resultados que o certame tradicional não entrega. Por isso, exige disciplina: motivação circunstanciada (por que credenciar é mais vantajoso que licitar única ou sucessivamente), critérios de ingresso impessoais e proporcionais, tratamento isonômico entre os aptos, condições de remuneração e de desempenho previamente definidas, governança de filas e prioridades quando a contratação não puder abarcar todos de imediato. Onde houver subjetivismo sem justificativa, filas opacas, remuneração mal calibrada ou “pontos” fabricados para favorecer, não há credenciamento legítimo — há desvio.

Tampouco procede a caricatura segundo a qual toda ordenação de preferência violaria a isonomia. A isonomia que interessa às compras públicas é a que protege o resultado, não a loteria. Se a Administração, com base em parâmetros objetivos e públicos, define quem atende melhor à necessidade e organiza a ordem de chamadas por mérito técnico, ela honra o princípio de seleção da proposta mais vantajosa; se recorre ao sorteio por falta de opção melhor, igualmente adota critério isonômico. Credenciar é escolher um modelo; não é abdicar de escolher bem dentro dele.

O controle deve acompanhar esse movimento com a régua correta. Não lhe cabe substituir o juízo de conveniência democraticamente imputado ao administrador público, mas verificar a aderência aos fins e às normas: se a finalidade pública é legítima e comprovável; se a motivação é suficiente; se os critérios são objetivos e difundidos; se a execução é monitorada; se há correção ágil de desvios. O texto legal é o piso, não o teto: o que se fiscaliza é o edifício construído sobre ele — e se ele abriga, com segurança e justiça, os cidadãos que dele dependem.

Em última análise, reconhecer o credenciamento como inexigibilidade é apostar na Administração que planeja, compara caminhos e escolhe o instrumento que melhor entrega valor público — sem ceder ao formalismo do “inspetor Javert” nem ao improviso. É admitir que a competição é um meio e não um fim; que há ocasiões em que competir para excluir é menos eficiente do que competir para servir; que ampliar a rede de prestadores, sob condições uniformes e com governança, pode maximizar acesso, qualidade e economicidade.

Se quisermos destravar o modelo brasileiro de compras – ainda demasiado parecido, em sua espinha dorsal, com o do Brasil Império – precisamos abandonar o “fetiche” do rito único e aceitar que o sistema oferece um menu de soluções. Licitar quando licitar for o melhor; credenciar quando credenciar for o melhor; motivar sempre, controlar sempre. É assim que se honra a Constituição, não com frases prontas, mas com resultados.

Por tudo isso, o credenciamento é – e deve ser tratado como – hipótese de inexigibilidade: não porque prescinde da igualdade, mas porque a radicaliza; não porque afasta a competição, mas porque, quando a competição excludente contraria o interesse público, a substitui por um arranjo mais inteligente, aberto e responsável. Onde há método, motivação e transparência, o credenciamento se converte em caminho regular para realizar, com mais precisão, a finalidade maior das contratações públicas: entregar valor à sociedade.

REFERÊNCIAS

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______________. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. MACIEL, Francismary Souza Pimenta. Aspectos hermenêuticos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Revista do Tribunal de Contas da União. Edição 147, 2021. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/1695>. Acesso em: 08 ago 2025.

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JACOBY FERNANDES, Ana Luiza. JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. JACOBY FERNANDES, Murilo. Tratado de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133/2021. Arts. 1º ao 52. Belo Horizonte: Fórum, 2024.

MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG) - CONSULTA: 1120202, Relator.: CONS. SUBST. HAMILTON COELHO, Data de Julgamento: 07/06/2023.

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TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 14.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2025.


[1] JACOBY FERNANDES, Ana Luiza. JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. JACOBY FERNANDES, Murilo. Tratado de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133/2021. Arts. 1º ao 52. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 110.

[2] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Decisão 439/1998 – Plenário – Relator: Min. Adhemar Paladini Ghisi.

[3] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 14.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2025, p. 451.

[4] BARBOSA, Jandeson da Costa. Contrata+Brasil: uma análise do 14-bis das compras públicas. Disponível em: <https://virtugestaopublica.com.br/contratabrasil-uma-analise-do-14-bis-das-compras-publicas>. Acesso em: 08 ago 2025.

[5] BARBOSA, Jandeson da Costa. Contrata+Brasil: uma análise do 14-bis das compras públicas. Disponível em: <https://virtugestaopublica.com.br/contratabrasil-uma-analise-do-14-bis-das-compras-publicas>. Acesso em: 08 ago 2025.

[6] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 533/2022 – TCU – Plenário. Trecho do Voto do Ministro Benjamin Zymler.

[7] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 351/2010-Plenário.

[8] BARBOSA, Jandeson da Costa. Contrata+Brasil: uma análise do 14-bis das compras públicas. Disponível em: <https://virtugestaopublica.com.br/contratabrasil-uma-analise-do-14-bis-das-compras-publicas>. Acesso em: 08 ago 2025.

[9] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 533/2022 – TCU – Plenário.

[10] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 533/2022 – TCU – Plenário.

[11] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 533/2022 – TCU – Plenário.

[12] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 533/2022 – TCU – Plenário.

[13] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2977/2021-TCU-Plenário.

[14] “O modelo adotado, que permite a seleção livre de fornecedores por parte dos municípios consorciados, sem critérios estabelecidos, mostra-se incompatível com o princípio da isonomia e, diante da natureza do objeto (quarteirização da gestão de frota), apresenta indícios de direcionamento. Ainda que fosse viável a adoção do credenciamento, no caso em tela, ao delegar a escolha dos fornecedores diretamente aos municípios consorciados, sem critérios (elemento fundamental do credenciamento), compromete-se a imparcialidade do processo.”. In: PARANÁ. Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Acórdão 1369/2025-Pleno.

[15] CAMARÃO, Tatiana. STROPPA, Christianne. E-marketplace para a Administração Pública no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2025, p. 117.

[16] BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. MACIEL, Francismary Souza Pimenta. Aspectos hermenêuticos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Revista do Tribunal de Contas da União. Edição 147, 2021. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/1695>. Acesso em: 08 ago 2025.

[17] MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG) - CONSULTA: 1120202, Relator.: CONS. SUBST. HAMILTON COELHO, Data de Julgamento: 07/06/2023.

[18] BARBOSA, Jandeson da Costa. Nova Lei de Licitações: Marketplace Público, o rei, Caetano e outras reflexões. Disponível em: < https://virtugestaopublica.com.br/nova-lei-de-licitacoes-marketplace-publico-o-rei-caetano-e-outras-reflexoes>. Acesso em: 08 ago 2025.

[19] “Mas você, nobre leitor, pode se insurgir lembrando das dispensas de licitação em razão do valor. Nesse particular, tivemos a regulamentação do Executivo federal transformando-as em um mini-pregão. Tem até nome próprio: Dispensa Eletrônica. E a notícia foi dando como se isso fosse uma coisa boa! Vejamos trecho da Instrução Normativa Seges/ME nº 67/2021: [...] É com a devida vênia, e prestando o mais absoluto respeito e gratidão aos responsáveis pela implantação narrada – e reconhecendo os incontáveis desafios pelos quais passa o servidor público que tente inovar, bem como os ganhos em relação às ferramentas anteriores – que tecemos as críticas a seguir. Mas é como se tivesse sido realizado um investimento pesado em um aplicativo para utilização de táxi na era... do uber, 99, etc. Uma lei nova, um regulamento novo, um sistema novo para um modelo velho.”. In: BARBOSA, Jandeson da Costa. Nova Lei de Licitações: Marketplace Público, o rei, Caetano e outras reflexões. Disponível em: < https://virtugestaopublica.com.br/nova-lei-de-licitacoes-marketplace-publico-o-rei-caetano-e-outras-reflexoes>. Acesso em: 08 ago 2025.