Contratação de plataforma privada de compras públicas de órgão ou ente estatal por dispensa de licitação

O artigo investiga se a Administração Pública pode contratar, por dispensa de licitação fundada no art. 75, IX, da Lei 14.133/2021, plataformas privadas de contratações públicas. A resposta é estrita: a hipótese só se aplica quando a pessoa jurídica de direito público adquire bens/serviços de órgão ou entidade que integre a Administração, criada especificamente para fornecer aquele objeto à própria Administração, pertencendo ao mesmo ente federado, atuando em regime não concorrencial, com preço compatível com o mercado, sem distribuição de lucros/dividendos a particulares e sem subcontratação do núcleo do objeto. Como contribuição prática, o trabalho oferece um teste de enquadramento cumulativo e orienta a prova documental (finalidade, não concorrência, preço e execução direta) como condição de validade do ato.

Jandeson da Costa Barbosa

8/18/202557 min read

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Contratação de plataforma privada de compras públicas de órgão ou ente estatal por dispensa de licitação

Jandeson da Costa Barbosa

Pioneiro na utilização de IA em Licitações e Contratos. Mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Público. Membro da Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União (TCU). Professor de Licitações e Contratos. Advogado.

Resumo

O artigo investiga se a Administração Pública pode contratar, por dispensa de licitação fundada no art. 75, IX, da Lei 14.133/2021, plataformas privadas de contratações públicas. A resposta é estrita: a hipótese só se aplica quando a pessoa jurídica de direito público adquire bens/serviços de órgão ou entidade que integre a Administração, criada especificamente para fornecer aquele objeto à própria Administração, pertencendo ao mesmo ente federado, atuando em regime não concorrencial, com preço compatível com o mercado, sem distribuição de lucros/dividendos a particulares e sem subcontratação do núcleo do objeto. Como contribuição prática, o trabalho oferece um teste de enquadramento cumulativo e orienta a prova documental (finalidade, não concorrência, preço e execução direta) como condição de validade do ato.

Abstract

The article investigates whether Public Administration may procure private platforms for public procurement by invoking the no‑bid exception in Article 75(IX) of Law 14,133/2021. The answer is narrow: the exception applies only when a legal entity under public law acquires goods/services from a public body or entity that belongs to the Public Administration, was specifically created to deliver that very object to the Administration itself, belongs to the same federative level, operates in a non‑competitive regime, and offers a market‑compatible price, with no distribution of profits/dividends to private investors and no subcontracting of the core scope. As a practical contribution, the paper provides a cumulative eligibility test and guides the documentary substantiation (purpose, non‑competition, pricing, and direct performance) as a condition for the act’s validity.

Resumen

El artículo examina si la Administración Pública puede contratar plataformas privadas de contrataciones públicas con base en la dispensa de licitación del art. 75, IX, de la Ley 14.133/2021. La respuesta es restrictiva: la excepción solo se aplica cuando una persona jurídica de derecho público adquiere bienes/servicios de un órgano o entidad pública que integra la Administración, fue creada específicamente para suministrar ese mismo objeto a la propia Administración, pertenece al mismo ente federado, actúa en régimen no competitivo y ofrece precio compatible con el mercado, sin distribución de utilidades/dividendos a particulares y sin subcontratación del núcleo del objeto. Como aporte práctico, el trabajo presenta una prueba de elegibilidad acumulativa y orienta la documentación probatoria (finalidad, no competencia, precio y ejecución directa) como condición de validez del acto.

1 – Introdução

O avanço das plataformas privadas de pregão no ecossistema de compras públicas é um fato quantitativamente relevante e juridicamente sensível. Em levantamento do TCU[1], a extração do PNCP referente a janeiro-maio/2024 indicou que o uso dessas plataformas “movimentou cerca de R$ 113 bilhões e envolveu 160 mil compras/itens”, o que corresponde a “aproximadamente 69%” do volume de valores contidos no PNCP, com 120 plataformas reportando dados (universo de 217 sistemas integrados).

Do ponto de vista normativo, a Lei 14.133/2021, através do seu art. 175, § 1º, admite o emprego de sistemas eletrônicos privados, desde que integrados ao PNCP e na forma de regulamento: “as contratações poderão ser realizadas por meio de sistema eletrônico fornecido por pessoa jurídica de direito privado, na forma de regulamento”, preservada a integração com o PNCP. A mesma lei exige planejamento robusto: o Estudo Técnico Preliminar deve “evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução”, permitindo a avaliação de viabilidade técnica e econômica (art. 18, § 1º).

O diagnóstico institucional, contudo, revela uma prática ainda difusa e pouco padronizada. No Acórdão 1507/2024-Plenário, o TCU consignou que, quanto às formas de contratação dos serviços prestados por plataformas privadas, “de forma majoritária são realizadas dispensas e inexigibilidade”, havendo menções a “termo de cooperação técnica” e “termo de adesão”, e que “em nenhum caso foi mencionada a realização de pregão eletrônico ou concorrência”. A Corte de Contas também registrou preocupação com o baixo lastro técnico dessas escolhas, destacando que “mais de 70% dos respondentes” de questionário aplicado no âmbito do TC 027.907/2022-8 informaram não ter elaborado ETP prévio para fundamentar a contratação da plataforma utilizada.

Em termos de diretriz, o próprio TCU assinalou que, “de regra, a escolha deve ser objeto de procedimento licitatório específico, pois várias são as plataformas presentes no mercado” (grifou-se). Essa orientação converge com a centralidade do PNCP e com o desenho legal de planejamento e governança das contratações públicas, afastando a ideia de adesões informais que desconsiderem a análise comparativa de soluções e a justificativa técnica-econômica.

Diante desse cenário empírico e normativo, partimos das seguintes premissas básicas verdadeiras: a Administração Pública pode contratar plataformas privadas de operacionalização digital das suas contratações públicas, não se limitando ao pregão; e, essa contratação é regida pela Lei 14.133/2021.

Assim, existe um problema científico de matiz jurídica a ser investigado com necessária profundidade: quais as formas juridicamente possíveis de contratar essas plataformas? Conforme o levantamento do TCU mostrou, elas são, geralmente, contratadas pela singela celebração de “termo de adesão”, bem como por dispensa e inexigibilidade de licitação. A realização de licitação, por ser norma geral das contratações públicas prevista no art. 37, inciso XXI da Constituição da República, é uma resposta possível, mas pode não ser a única.

Em razão das limitações físicas deste formato de publicação, o presente trabalho delimita, desde logo, o seu recorte metodológico: investigar exclusivamente a possibilidade jurídica de contratação de plataformas privadas de pregão por dispensa de licitação com fundamento no art. 75, inciso IX, da Lei 14.133/2021 – sem pretender tratar das outras vias referidas acima, que apenas serão referidas na exata medida necessária ao contraste analítico.

2 – Por que existe a licitação dispensável

Dentro da contratação direta há, como sabemos, duas hipóteses: dispensa e inexigibilidade de licitação. Diferentemente do que ocorre com a inexigibilidade de licitação, em que a licitação não ocorrerá por inviabilidade de competição, nos casos de dispensa a competição é plenamente viável.[2] O certame não ocorre “simplesmente” porque assim quis o legislador. O Constituinte outorgou ao legislador nacional a competência para definir, com base no jogo democrático-representativo, em quais hipóteses a licitação poderá não ser realizada.

É simples assim: a licitação deixa de ocorrer por causa do querer do legislador. É claro que trata-se de um querer sob o crivo do interesse público. Assim, o certame não deixa de ser realizado por impossibilidade, inviabilidade ou algo do gênero. Não, a contratação é dispensável porque o legislador nacional guardou para si a competência para escolher, segundo critérios e motivos que caberão a ele decidir, em quais situações ele possibilitará ao administrador público deixar de realizar licitação, mesmo sendo esta plenamente possível. Não é outro o fundamento da dispensa de licitação.

É possível – e desejável – que o jurista e o operador do direito administrativo busquem a intenção do legislador na interpretação da hipótese de dispensa, é o que chamamos de interpretação teleológica.[3] Todavia, não cabe ao intérprete indagar acerca da qualidade da decisão do legislador ao escolher as hipóteses de dispensa (salvo em caso de controle de constitucionalidade), tampouco estabelecer analogias inadequadas para ampliar o rol de hipóteses.

Observe-se, por exemplo, que é hipótese de dispensa de licitação a “contratação de entidades privadas sem fins lucrativos, para a implementação do Programa Cozinha Solidária, que tem como finalidade fornecer alimentação gratuita preferencialmente à população em situação de vulnerabilidade e risco social” (art. 75, inciso XVIII, da Lei 14.133/2021). O leitor poderia arguir que a hipótese de dispensa, no caso, é o escopo social da contratação. Mas essa não é a resposta juridicamente adequada.

Possivelmente, o legislador decidiu inserir tal hipótese no rol de dispensa de licitação por essa motivação política. Contudo, essa motivação não pode ser utilizada para ampliar o rol para situações semelhantes. Isso porque a finalidade do instituto da dispensa de licitação é justamente dar ao legislador nacional esse poder de decidir objetivamente as situações em que a licitação será dispensada segundo o seu juízo subjetivo e privativo.

A prova disso é que não é possível, com base no citado art. 75, inciso XVIII, contratar, por exemplo, entidades privadas sem fins lucrativos para a implementação do Programa Cobertor Solidário, que tem como finalidade fornecer cobertores gratuitos preferencialmente à população em situação de vulnerabilidade e risco social. E, repise-se, o motivo é simples: não é possível porque tal hipótese de dispensa não está prevista em lei nacional. Não cabe ao administrador público utilizar de analogia ou outro meio interpretativo para ampliar o alcance das hipóteses de dispensa, pois esse um juízo de “conveniência e oportunidade” politicamente mais elevado, que é privativo do legislador nacional.

Não é que não seja importante o intérprete averiguar o contexto fático e axiológico para a contratação direta, é que não é necessária a análise de nenhum outro elemento para verificar a permissividade[4] jurídica da dispensa de licitação. Para ela ser permitida basta a previsão legal, eis que o legislador tomou para si, nessas hipóteses, a análise subjetiva autorizadora da excepcionalização à regra da licitação.

Note-se que, não à toa, o rol de hipóteses de dispensa de licitação é taxativo: todas as hipóteses estão previstas em lei nacional. Entretanto, observe-se que a hipótese de dispensa de licitação não necessita estar enumerada no art. 75 da Lei 14.133/2021. Não é necessário nem mesmo que esteja prevista no corpo da Lei 14.133/2021. A previsão pode ocorrer em qualquer lei ordinária nacional.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento pacífico no sentido não ser possível que estados e municípios criem hipóteses de dispensa de licitação por lei, pois esta é competência reservada para a norma geral, atribuída ao legislador nacional pelo art. 22, inciso XXVII, da Constituição da República.[5]

Impende repisar que a hipótese de dispensa de licitação não necessita estar especificamente na Lei-Geral de Licitações. Sendo a norma editada pelo Congresso Nacional, segundo os ritos legislativos adequados (lei ordinária ou medida provisória), esta poderá criar hipótese de dispensa de licitação. Citamos alguns exemplos de hipóteses de dispensa de licitação que estão previstos em outros diplomas normativos que não a Lei 14.133/2021: Lei nº 11.947/2009 – PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar); Lei nº 9.637/1998 – Organizações Sociais (OSs); Lei nº 10.973/2004 – Marco Legal da Inovação; Lei nº 9.433/1997 – Política Nacional de Recursos Hídricos.

Portanto, podemos definir a dispensa de licitação como a contratação pública sem realização de licitação, nas hipóteses expressamente previstas em lei nacional, que encontra a razão de ser na análise politicamente qualificada e exclusiva do legislador nacional sobre as situações em que este decide, com base em critérios políticos, permitir que a Administração Pública excepcione a regra geral de realização de licitação, estando a dispensa adstrita aos limites expressos e implícitos da previsão legal.

3 – A dispensa de licitação para contratação de órgão ou entidade que integre a Administração Pública

O art. 75 da Lei 14.133/2021 enumera as hipóteses de dispensa de licitação. Desse dispositivo, extrai-se o inciso IX, que dispõe que a licitação é dispensável: “para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integrem a Administração Pública e que tenham sido criados para esse fim específico, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado”.

É esse o dispositivo legal que alberga a hipótese de dispensa de licitação objeto deste ensaio. Comecemos a análise colhendo lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro sobre o tema:

“Esta hipótese de dispensa de licitação só pode ser utilizada por pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados, Municípios, Distrito Federal, Territórios, autarquias, fundações de direito público e consórcios públicos) e desde que estejam presentes todos os demais requisitos: (a) que o contratado seja órgão ou entidade da Administração Pública, o que abrange todas as entidades referidas no art. 6°, inciso III, da Lei n° 14.133/21; (b) que esse órgão ou entidade tenha sido criado com o fim específico de fornecer os bens ou serviços objeto do contrato; (c) que o contratante e o contratado sejam do mesmo nível de governo, já que ninguém vai criar um ente para prestar serviços ou fornecer bens para pessoas jurídicas de outra esfera de governo; (d) que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado.”[6]

Com base nos requisitos detalhadamente explicitados por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, torna-se evidente que a hipótese do inciso IX do artigo 75 impõe condicionantes específicas, cuja observância cumulativa é imprescindível para seu correto enquadramento jurídico. Nessa senda, analisaremos a seguir esses e outros requisitos a serem identificados no caso concreto para a configuração da referida hipótese de dispensa.

4 – Elemento subjetivo referente ao contratante e ao contratado

Ao examinarmos detidamente os requisitos destacados por Di Pietro, percebe-se inicialmente que esta hipótese específica de dispensa exige, como primeiro requisito, que o contratante seja necessariamente uma pessoa jurídica de direito público interno. Isso implica, portanto, que a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, suas respectivas autarquias, fundações públicas de direito público e consórcios públicos de direito público são as únicas entidades habilitadas a utilizar essa modalidade excepcional.

Assim, não poderão contratar (ser contratante) com base nesse dispositivo: empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas de direito privado e consórcios público de direito privado.

Noutro giro, passemos à análise de quais órgãos e instituições podem ser contratados com base nesse dispositivo. Como acentua a consagrada administrativista, é necessário “que o contratado seja órgão ou entidade da Administração Pública, o que abrange todas as entidades referidas no art. 6°, inciso III, da Lei n° 14.133/21”[7]. Transcrevemos abaixo didática lição do Supremo Tribunal Federal acerca do conceito e composição da administração pública indireta:

“Resultado de processo de descentralização do poder, por meio da criação de pessoas jurídicas, a administração pública indireta é constituída por autarquias, fundações públicas e empresas estatais. Qualificam-se como empresas estatais as sociedades de economia mista e as empresas públicas, bem assim como as respectivas subsidiárias ou controladas.”[8]

Nessa senda, excluem-se, desde logo, entidades privadas, independentemente de seu grau de especialização, finalidade ou relevância estratégica. Felipe Boseli é específico ao tratar do tema: “Não se admite aqui a contratação de empresas privadas, ainda que sem fins lucrativos”[9].

Jacoby Fernandes aponta que nem mesmo as empresas privadas delegatárias de serviço público poderiam ser contratadas a partir desse inciso. Vejamos:

“Nenhum dos executores dos serviços delegados pode ser contratado diretamente com fulcro nesse inciso, mesmo os concessionários ou permissionários.

Quando a Administração Pública transfere ao particular a execução do serviço, embora tal ação possa ser compreendida como descentralização lato sensu, o delegado não é ente integrante da Administração Pública. É particular, para fins de contratação dos serviços ou fornecimentos.”[10]

Outro ponto a ser aclarado é o das empresas com participação acionária minoritária de entes públicos. Estas não devem ser confundidas com as sociedades de economia mista (SEM). Nas SEM, a Administração Pública detém o controle acionário, ou seja, a maioria das ações com direito a voto, enquanto nas empresas com participação acionária minoritária de entes públicos, como o próprio nome sugere, o controle da instituição está nas mãos de particulares.

O Tribunal de Contas da União (TCU) possui entendimento consolidado no sentido de não estar albergada pelo referido inciso a contratação de empresas cuja participação acionária com direito a voto do ente público seja minoritária. In verbis:

“Por essa razão, a jurisprudência desta Corte tem se consolidado no sentido de que a participação de empresa estatal no bloco de controle de empresa privada da qual é acionista minoritária, mediante celebração de acordo com o acionista majoritário, conferindo à estatal parcela de controle compartilhado, não a torna controladora da empresa participada, devendo esta concorrer nas licitações em condições de igualdade com as demais empresas do setor privado, sendo indevida sua contratação direta pela estatal com base no art. 24, inciso XXIII, da Lei 8.666/1993 (e.g 1220/2016 – Plenário).”.[11]

Nos filiamos ao entendimento do TCU, no sentido de que não pode ser contratada, com esteio no art. 75, inciso IX, da Lei 14.133/2021, empresa com participação acionária do ente público com direito a voto minoritária. Isso não equivale a afirmar que, uma vez detida pelo ente público participação acionária majoritária de uma empresa, esta possa ser contratada pela referida hipótese de dispensa de licitação. Essa conclusão seria o erro típico de interpretação textual denominado extrapolação. Esse tema será debatido adiante, ainda neste trabalho.

Para o cenário da plataforma, o elemento subjetivo impõe dois filtros simultâneos: (i) quem contrata deve ser pessoa jurídica de direito público interno (União, Estados, DF, Municípios, autarquias, fundações de direito público e consórcios públicos de direito público); e (ii) quem é contratado precisa integrar a Administração Pública, excluídas as empresas privadas que não integram a Administração Pública – ainda que sem fins lucrativos –, as delegatárias de serviços públicos e as sociedades privadas com participação minoritária do Estado.

Nessa toada, no que toca à contratação de plataformas privadas de contratações públicas pela hipótese de dispensa do art. 75, IX, o elemento subjetivo impõe um filtro rigoroso: quem contrata deve ser pessoa jurídica de direito público interno, e quem é contratado deve ser órgão ou entidade que integre a Administração Pública — nunca particular, ainda que sem fins lucrativos ou delegatário de serviço público.

Daí resulta, para o caso concreto, que apenas plataformas ofertadas por entidade estatal integrante da Administração (direta ou indireta) podem seguir para a etapa seguinte de verificação; ofertas provenientes de empresas privadas (não estatais) – ainda que delegatárias de serviço público ou instituição sem fins lucrativos – ficam, por definição, fora do inciso IX.

Em reforço, a jurisprudência do TCU afasta, com nitidez, arranjos nos quais o Estado detenha participação minoritária em empresa privada: a mera presença do ente público no bloco acionário não transmuta a natureza privada da empresa, o que veda a contratação direta por essa hipótese. Na sistemática do artigo, portanto, plataforma “privada” ofertada por empresa estatal (ou outro “órgão ou entidade da Administração”) pode prosseguir somente se a ofertante integra a Administração Pública; se a ofertante é particular, a contratação deve ser estruturada por outro caminho jurídico.

5 – Finalidade específica

O segundo requisito trata da finalidade institucional do órgão ou entidade contratados. Aqui, a Lei estabelece que o órgão ou entidade a ser contratado deve ter sido criado especificamente para fornecer os bens ou prestar os serviços objeto do contrato administrativo pretendido. Em outras palavras, não basta ser um órgão ou entidade pública; é essencial que a finalidade legal e estatutária da entidade contratada coincida exatamente com o objeto específico da contratação direta pretendida pelo contratante.

Um primeiro aspecto acerca do tema é a percepção de que uma das nuances do termo “finalidade específica” consiste no fato de que a entidade estatal a ser contratada tenha sido especificamente para prestar serviço ou fornecer bens à Administração Pública. É o que defende Marçal Justen Filho:

“Não basta a prestação de serviços públicos ou a atividade de suporte. É indispensável que a finalidade da existência da entidade contratada seja atuar em face da Administração Pública”.[12]

É também nesse sentido a jurisprudência do TCU, retratada no julgado a seguir:

“Apenas as entidades que prestam serviços públicos de suporte à Administração Pública, criadas para esse fim específico, podem ser contratadas com dispensa de licitação, nos termos do art. 24, inciso VIII, da Lei 8.666/1993”.[13]

Ultrapassado a conclusão quanto à necessidade de que a contratada tenha sido criado para oferecer bens e serviços à Administração Pública, pode-se avançar à segunda conclusão: a entidade deve ter sido criada com a finalidade de prover a Administração com aquele bem ou serviço específico que é objeto da contratação que se pretende realizar por dispensa com esteio no inciso IX do art. 75 da Lei 14.133/2021.

O assunto já foi enfrentado pelo TCU. No caso concreto, foi perquirida a possibilidade de contratação da Petrobrás por dispensa de licitação com lastro no dispositivo análogo da Lei 8.666/1993, para fornecer combustível à Administração Pública. O entendimento do Tribunal foi pela impossibilidade, eis que ausente a finalidade específica da empresa estatal em relação ao objeto, bem como ao fato de que a empresa fornece combustível também a particulares, atuando, portanto, em regime concorrencial. Vejamos:

“O Tribunal, em reiteradas ocasiões, entendeu indevida a contratação da Petrobras, com dispensa de licitação, porque ela não foi criada com o fim exclusivo de promover fornecimento de combustível à Administração Pública, faltando assim o quesito necessário à aplicação da norma do art. 24, inciso VIII, da Lei 8.666/93 (Acórdão 2063/2005-TCU-Plenário. Nesse sentido: decisões 253/1997, Plenário, e 118/1998, 2ª Câmara; Acórdão 56/1999-TCU-Plenário, 38/1999 e 1.481/2005, 1ª Câmara; 142/1996, 2ª Câmara).

Esse é, também, o caso dos Correios.”[14]

Situação curiosa ocorreu no julgamento do Acórdão 1207/2023-TCU-Plenário. Se realizada apressada leitura sobre a parte dispositiva do julgado, ter-se-ia a impressão – também apressada – de que seria possível contratar empresa estatal pela hipótese de dispensa de licitação do inciso IX em comento, ainda que tal empresa não tenha sido constituída com a finalidade específica do objeto a se contratar, bastando tão somente alcançar sua finalidade genérica. Vejamos:

“9.2 responder ao consulente que os Conselhos de Fiscalização de Profissões Regulamentadas, com vistas à cobrança dos seus créditos inscritos em dívida ativa na forma disciplinar, a exemplo dos decorrentes de anuidades inadimplidas, podem se valer do disposto no art. 58 da Lei 11.941/2009 para a contratação dos serviços de instituição financeira oficial capacitada, por dispensa de licitação, com remuneração conforme o resultado, observadas, no que couber e sempre que possível, as referências indicadas no ato normativo previsto no § 3º do mencionado dispositivo legal, bem como as exigências contidas no art. 26, parágrafo único, da Lei 8.666/1993 ou no art. 72 da Lei 14.133/2021;”. [15]

Todavia tal conclusão seria, como já citamos, apressada. Esse acórdão é um excelente exemplo didático para demonstrar como uma leitura rápida e atécnica de um julgado pode conduzir a um verdadeiro desastre interpretativo. É oportuno narrar brevemente o caso fático que serve de pano de fundo ao decisum.

O Acórdão trata de uma consulta realizada por Deputado Federal acerca da possibilidade de os Conselhos de Fiscalização de Profissões Regulamentadas contratarem diretamente o Banco do Brasil (sociedade de economia mista federal), sem licitação, para efetuar a cobrança de suas dívidas ativas (anuidades inadimplidas), remunerando-o pelo sucesso na recuperação dos créditos.

Inicialmente, a unidade técnica do TCU entendeu que tal contratação direta não se enquadrava nas hipóteses tradicionais de dispensa previstas na Lei nº 8.666/1993 ou na Lei nº 14.133/2021, pois o Banco do Brasil não foi criado com a finalidade específica exigida pela legislação para justificar a dispensa de licitação. Desse modo, a unidade técnica entendeu pela sua impossibilidade.

No entanto, o relator, Ministro Vital do Rêgo, destacou que a questão deveria ser examinada sob a ótica do art. 58 da Lei nº 11.941/2009, que permite aos órgãos encarregados da cobrança da Dívida Ativa da União contratar, por dispensa, instituições financeiras públicas especializadas, remunerando-as com base no resultado obtido. O Relator esclareceu que os créditos cobrados pelos Conselhos, derivados de anuidades inadimplidas, são legalmente classificados como Dívida Ativa da União, permitindo, assim, a aplicação desse dispositivo.

Ou seja, da leitura do Voto do Relator do Acórdão, é possível obter duas conclusões. Cite-se a primeira delas: não é possível contratar o Banco do Brasil para a cobrança de anuidades pelos conselhos profissionais, baseando-se na hipótese de dispensa de licitação prevista no art. 75, inciso IX, da Lei 14.133/2021. Vejamos:

“3. Na instrução de mérito, a AudGovernança pontuou que, na forma tanto do art. 24, inciso VIII, da Lei 8.666/1993, quanto do art. 75, inciso IX, da Lei 14.133/2021, a "pessoa jurídica de direito público" pode apenas contratar por dispensa de licitação uma entidade da Administração Pública que tiver sido criada especificamente para prestar o serviço demandado, não sendo o caso do Banco do Brasil em relação à cobrança de dívidas ativas próprias dos Conselhos de Fiscalização de Profissões Regulamentadas.

4. Por conseguinte, a unidade instrutiva propõe informar ao consulente, em suma, que a contratação em questão só é viável se o Banco do Brasil for vencedor de certame licitatório.

[...]

7. Não discordo da AudGovernança quando consigna que a hipótese de dispensa de licitação constante do art. 24, inciso VIII, da Lei 8.666/1993 (ou do seu correlato na Lei 14.133/2021) não se aplica à contratação do Banco do Brasil como prestador do serviço de cobrança aos Conselhos, por não se constituir de uma companhia concebida dentro da Administração Pública Federal Indireta para tal "fim específico" que a norma exige.

8. Além do mais, na esteira da jurisprudência do TCU, o referido dispositivo não comporta a interpretação de que poderiam ser contratadas diretamente estatais que fazem o trabalho como atividade econômica em concorrência com empresas privadas, e não a título de serviço público (Acórdão 6931/2009-TCU-Primeira Câmara, Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues, e Acórdão 1800/2016-TCU-Plenário, Relator Ministro Bruno Dantas)”.[16]

Noutro giro, apesar de tal ponto não ter sido suscitado anteriormente na instrução processual, o Relator encontrou na legislação esparsa uma hipótese específica de dispensa de licitação para albergar o caso em análise: o art. 58 da Lei 11.941/2009. Vejamos:

“9. Entretanto, chamou a minha atenção que, na consulta, existe a indicação de que a Fazenda Nacional haveria contratado o Banco do Brasil com remuneração "por sucesso", em modelagem que se pergunta se vale também para os Conselhos de Fiscalização de Profissões Regulamentadas, em que pese não ter sido fornecida nenhuma comprovação ou informação quanto ao fundamento legal.

10. Depois de compulsar a legislação respeitante à cobrança dos créditos da Fazenda Pública, pude compreender que a presente consulta não tem a Lei 8.666/1993 sob perspectiva, mas sim, na verdade, a Lei 11.941/2009...

[...]

20. Portanto, o panorama aponta para a necessidade de reforço dos meios de cobrança extrajudicial, fazendo oportuna a utilização da possibilidade legal de contratação de bancos públicos capacitados, por dispensa de licitação, para prestarem serviços em apoio aos Conselhos de Fiscalização de Profissões Regulamentadas, aos quais, como esclarecido, certamente se aplica o art. 58 da Lei 11.941/2009.”.[17]

Desse modo, além da necessária lição quanto à necessidade da leitura de um julgado completo para a sua adequada compreensão, é correto afirmar que o precedente citado demonstra que o TCU se inclina no sentido de que a finalidade específica exigida pelo inciso IX do art. 75 da Lei nº 14.133/2021 deve ser interpretada de maneira restritiva. Isso porque, no Acórdão 1207/2023-TCU-Plenário, ficou claro que o Tribunal entende não ser suficiente o fato de uma entidade estatal desempenhar genericamente um serviço semelhante ao que se deseja contratar para fundamentar a dispensa de licitação com base no referido inciso.

Assim, conclui-se que o órgão ou entidade a ser contratado deve ter sido criado com a finalidade específica de fornecer aqueles bens ou prestar aqueles serviços, e também com a finalidade de fazê-los exclusivamente para a Administração Pública. Isso porque, como veremos adiante, quando o contratado oferece também aquele objeto a particulares, perde-se a característica de descentralização administrativa – núcleo dessa hipótese de dispensa – e passa-se a atuar em regime concorrencial.

Portanto, aplicada à contratação de plataformas privadas de contratações públicas pela hipótese de dispensa do art. 75, IX, a finalidade específica é condição material indeclinável: a entidade estatal candidata ao ajuste deve ter sido criada para desenvolver, operar e manter exatamente o tipo de solução a ser contratado, e para servir à Administração Pública — não bastam objetos estatutários genéricos (“TI”, “soluções digitais”). A leitura é restritiva, como evidencia a jurisprudência do TCU: a afinidade meramente genérica entre a atuação da estatal e o objeto não supre a exigência legal; em precedentes, o Tribunal rechaçou a dispensa quando a estatal não fora criada para aquele objeto específico e/ou o ofertava em mercado, evidenciando atuação concorrencial.

Em termos práticos, a instrução processual precisa comprovar, pelos atos institucionais e estatutos, que a missão da entidade abrange, de modo expresso, a provisão de plataforma de contratações públicas à Administração; sem isso, não há como sustentar o enquadramento no inciso IX.

6 – Pertencimento ao mesmo ente federado: a descentralização administrativa

Um terceiro requisito fundamental apresentado por Di Pietro é a necessidade de que contratante e contratado sejam pertencentes ao mesmo nível de governo, o que se revela como decorrência lógica da própria essência do dispositivo em análise. Isso quer dizer que apenas a União pode contratar por dispensa de licitação, com esteio no já referido IX do art. 75 da Lei nº 14.133/2021, órgão ou entidade pertencente a União. Um município não pode contratar um órgão ou entidade pertencente à União, a um estado membro ou a outro muncípio.

Isso porque o legislador, ao delinear essa hipótese específica de dispensa, buscou conferir ao ente político um mecanismo para operacionalizar uma atividade administrativa específica por meio de uma entidade (ou órgão, segundo o texto legal) por ele mesmo criada para essa finalidade.

Trata-se de um instrumento jurídico que viabiliza, essencialmente, a descentralização administrativa: o ente político opta por não executar diretamente determinada atividade administrativa através dos seus órgãos da Administração direta, mas sim delegá-la, geralmente, a uma entidade integrante da sua própria estrutura administrativa indireta, especificamente criada para cumprir aquela função. Isso sem descuidar de que a redação do inciso IX autoriza também a contratação de “órgão” com base naquele dispositivo.

Para melhor compreensão do tema, é útil transcrever lição do festejado autor Jacoby Fernandes:

“A justificativa jurídica para essa dispensa repousa no fato de que a descentralização das atividades não poderia obrigar à licitação. Assim, se o Estado possui na sua estrutura um órgão que realiza um serviço, ao conceder-lhe autonomia e personalidade, continuaria podendo contratar, diretamente, sob pena de inviabilizar a própria descentralização.”[18]

É essa também a lição de Marçal Justen Filho:

“Anote-se que, na maior parte dos casos, a questão se relaciona a soluções de descentralização, norteadas por postulados gerenciais. Uma certa necessidade administrativa, que era atendida por meio dos recursos próprios da Administração, passa a ser satisfeita por via de uma entidade administrativa - cuja existência se relaciona especificamente a uma determinada atuação.”[19]

No mesmo sentido leciona Felipe Boseli:

“Trata-se de uma estrutura contratual fundamental a viabilizar políticas de descentralização da Administração Pública. As atividades que eram realizadas pela Administração direta podem passar a ser segmentadas em estatais que atuem com o escopo de prestar esses serviços para a Administração Pública, trata-se dos contratos denominados no direito estrangeiro de in-house contracts. Tem-se, como exemplos, no Governo Federal, a Empresa de Planejamento e Logística S.A. (EPL), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), dentre outros.

Se a Administração constitui pessoa jurídica de direito público com o único objetivo de prestar serviços para si própria, não faria sentido que esses contratos tivessem que ser objeto de processo licitatório.”[20]

Desse modo, parece-nos que não faria sentido lógico ou jurídico um ente político contratar diretamente, por meio dessa dispensa específica criada para fins de descentralização administrativa, uma entidade pertencente à estrutura administrativa de ente político distinto. A intenção normativa é clara: a entidade pública contratada deve ser um desdobramento da própria Administração contratante, pois o objetivo é justamente que o poder público promova uma descentralização interna da atividade administrativa, mantendo controle estratégico e operacional, porém com maior especialização e eficiência. Em outras palavras, a dispensa se justifica precisamente pela proximidade institucional e pelo vínculo jurídico direto entre contratante e contratado, ambos pertencentes à mesma esfera governamental.

Assim, tal requisito reforça a lógica de exclusividade institucional que permeia essa hipótese de dispensa, afastando claramente qualquer possibilidade de contratação direta de órgão ou entidade vinculados a outro nível federativo ou político. Tal contratação com base nessa hipótese de dispensa violaria a coerência axiológica e jurídica da própria descentralização administrativa pretendida pelo legislador.

Esse parece ser o entendimento de Ronny Charles Torres:

“A hipótese de dispensa deriva da concepção racional de que pareceria ilógico que a Administração Pública concebesse um certame de disputa de ofertas para a aquisição de bens e serviços por ela mesma produzidos, através de pessoa jurídica criada para esse fim específico.

[...]

Noutro diapasão, respeitados os requisitos previstos no inciso IX do artigo 75, quando o Estado pretende bem ou serviço produzido em seu seio organizacional, é difícil compreender que o Administrador busque externamente aquilo que está a seu alcance e que pode obter sem o necessário e dispendioso certame licitatório, exigido para contratar com eventuais entidades estranhas a seu universo orgânico. Tal situação, em tese verificável, deve ser fundamentada em concretas e relevantes vantagens para o interesse público.”.[21] [grifo nosso]

Necessário pontuar que o tema não é pacífico na doutrina. Jacoby Fernandes possui entendimento em sentido contrário. Transcrevemos a seguir trecho completo, a fim de conservar o rico raciocínio do festejado autor:

“A Lei n° 8.666/19933 definiu, expressamente, o que se deve entender por ‘Administração e Administração Pública’. A nova lei mantém esses termos.

O legislador, corretamente, empregou esses dois termos em vários dispositivos da Lei, não havendo dúvidas quanto à sua utilização.

A parte do Direito que cuida da interpretação das leis, a hermenêutica, em um dos seus mais festejados mestres, Carlos Maximiliano, ensina que o juiz atribui aos vocábulos o sentido resultante da linguagem vulgar; porque se presume haver o legislador, ou escritor, usado expressões comuns; "porém, quando são empregados termos jurídicos, deve-se crer ter havido preferência pela linguagem técnica.

No presente caso, o legislador não só está usando termos jurídicos, como também está empregando termos que ele próprio conceituou.

Também é da hermenêutica a lição de Gianturco, de que se deve presumir que a lei não contenha palavras supérfluas; devem todas ser entendidas como escri-tas adrede para influir no sentido da frase respectiva.

Basta a lógica para assegurar essa proposição: se o legislador tivesse estabelecido que as pessoas jurídicas de Direito Público pudessem contratar com os órgãos e entidades integrantes da ‘Administração’ ', faria sentido restringir o alcance da norma à respectiva esfera de governo ou à respectiva pessoa jurídica. Não o fez, porém. Expressamente, e com o conteúdo que precisamente definiu no art. 6°, incisos III e IV, o legislador usou o termo ‘Administração Pública’. A se entender de modo diverso, ficaria impedida parte da colaboração entre esferas de governo e entre municípios vizinhos.

Ao consagrar essa interpretação, além de atender à literalidade de Lei, permite-se uma maior colaboração entre as diversas esferas de Governo, facilitando especialmente nos municípios, a divisão de atividades.”[22] [grifo nosso]

Tal posicionamento, entretanto, merece ponderações. Embora o entendimento sustentado por Jacoby Fernandes seja consistente em destacar a literalidade e a intenção colaborativa do legislador ao empregar o termo “Administração Pública”, é preciso analisar também a essência teleológica[23] da hipótese de dispensa prevista no inciso IX. O legislador, ao admitir a contratação direta nesse dispositivo, não visou apenas à simplificação procedimental ou à mera cooperação entre diferentes esferas governamentais, mas sim à implementação de uma descentralização administrativa interna, marcada pela criação específica de entidades voltadas diretamente para atender necessidades próprias do ente político que as instituiu. Para a cooperação interfederativa, entendemos que devem ser utilizados os meios destacados pela legislação, como convênio, acordo de cooperação, dentre outros.

Dessa forma, a interpretação ampliativa proposta pelo referido autor, apesar de louvável sob a perspectiva da cooperação interfederativa, pode gerar consequências indesejadas. Isso porque poderia permitir a criação e contratação de entidades públicas atuando em regime concorrencial, produzindo distorções significativas no mercado e afrontando diretamente princípios fundamentais como a isonomia, competitividade e eficiência.

Ademais, seriam afetados também o princípio da livre concorrência. Imagine-se que uma empresa pública fora criada pela União para prestar determinado serviço para ela em decorrência da necessidade de descentralizar a atividade a fim de dar-lhe maior especialidade e dinamismo. Esse serviço não é prestado em regime de monopólio legal ou de fato (caso o fosse, ocorreria a hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no art. 74, inciso I, da Lei 14.133/2021).

Caso essa empresa pública também preste o serviço de forma concorrencial, não poderia ser contratada por esta hipótese de dispensa, eis que ausente a finalidade específica. Não faria sentido ela, em concorrência com as empresas privadas, ser contratada por dispensa de licitação por outros entes que não aquele que preferiu criar a empresa pública como sua preferência de organização administrativa. Nesse caso, além de estar, na prática, atuando em regime concorrencial ao ser contratado por outros entes públicos, ainda haveria uma concorrência desleal, eis que a empresa pública teria a vantagem injustificada de ser contratada sem licitação. A questão do regime concorrencial será melhor abordada no item seguinte deste ensaio.

Por tudo isso, concordamos com a doutrina e jurisprudência segundo a qual somente podem ser contratados com fundamento no art. 74, inciso I, da Lei 14.133/2021 os órgãos ou entidades pertencentes ao ente político que o instituiu. De outro modo, estaria descaracterizada a descentralização administrativa.

Nessa toada, a contratação de plataformas privadas de contratações públicas pela hipótese de dispensa do art. 75, IX opera como mecanismo de descentralização interna: o ente político contrata órgão ou entidade sua, vale dizer, da mesma esfera federativa. Essa simetria – União-União, estado-estado, município-município (ou, quando couber, consórcio público de direito público) – é o que preserva a coerência institucional do modelo in house desenhado pelo legislador.

Transversalidades interfederativas, por seu turno, reclamam outros instrumentos (convênio, acordo de cooperação), mas não esta hipótese de dispensa de licitação. No caso da contratação dessas plataformas, portanto, a contratação direta só se legitima quando contratante e contratado pertencerem ao mesmo ente federado. Contratações “cruzadas” entre entes federativos rompem a ratio da descentralização e desfiguram a hipótese de dispensa do inciso IX.

7 – Proibição de vantagem ilegal na competição do mercado

O ponto analisado anteriormente leva o debate a indagar se é possível a contratação de entidade estatal que atue no regime concorrencial, disputando, no mercado, com empresas do setor privado ou mesmo com outras empresas estatais, com esteio na dispensa de licitação de que trata o inciso IX do art. 75 da Lei nº 14.133/2021.

Nesse prisma, parece-nos que, se um ente público constitui uma entidade de direito privado para prestar serviços que estejam abertos à livre concorrência com empresas privadas no mercado, seria juridicamente inadmissível justificar a contratação direta dessa entidade com base no referido dispositivo. Essa prática implicaria uma clara violação ao princípio constitucional da isonomia e ao próprio regime constitucional de concorrência, pois a entidade pública estaria utilizando uma prerrogativa excepcional de dispensa para favorecer um agente econômico específico em detrimento dos demais concorrentes privados. É nesse sentido lição de Marçal Justen Filho:

“A entidade que for constituída para satisfazer necessidades do público em geral ou para atuar em regime de competição com terceiros não é beneficiária da proteção contemplada no dispositivo examinado. A dispensa de licitação é orientada a assegurar a sobrevivência de uma entidade cuja razão de existência é a atuação em benefício da Administração.

[...]

Justamente por isso, não podem ser contratadas sem licitação as sociedades estatais que atuam no mercado, competindo com outros agentes privados. A competição no mercado é incompatível com a exigência de fim específico.

Toda entidade estatal que prestar serviços ou comercializar bens atuando em competição com outras empresas privadas não poderá beneficiar-se de qualquer privilégio ou vantagem. Empresa estatal atuante na exploração de atividades econômicas sob regime de competição com outros agentes privados não pode ser investida no privilégio de contratação direta com a Administração Pública.”[24]

Em outras palavras, se a atividade desempenhada pela entidade criada pelo ente político estiver inserida em ambiente competitivo e não constituir uma atividade típica ou exclusiva do Estado, a dispensa perderia seu fundamento central de descentralização administrativa interna, convertendo-se em indevida vantagem competitiva. Portanto, tal situação seria incompatível com o espírito e a finalidade do instituto da dispensa, resultando em clara distorção do sistema normativo previsto pela Lei nº 14.133/2021. É essa a conclusão de Justen Filho:

“O dispositivo apenas pode referir-se a contratações com sociedades estatais não empresárias.

Se o inc. IX do art. 75 pretendesse autorizar contratação direta com sociedades estatais empresárias, estaria caracterizada a inconstitucionalidade. É que tais entidades estão subordinadas ao art. 173, § 1°, inc. II, da CF/1988, o que implica a submissão a regime jurídico idêntico ao dos particulares. Não é constitucional criar benefícios, privilégios ou preferências em favor das sociedades estatais que exploram atividade econômica.”[25]

No mesmo sentido leciona Boseli:

“Para que seja viabilizada a dispensa de licitação, é necessário que a entidade contratada tenha sido criada com a finalidade exclusiva de prestação de serviços ou fornecimento de bens à Administração Pública. As empresas estatais que prestam serviços à iniciativa privada e concorrem neste mercado não podem ser contratadas com base nesta dispensa de licitação.

Não faria sentido que a empresa pública competisse no mercado privado com as empresas privadas e quando se tratasse de contratos com o governo, a mesma estatal que compete mercadologicamente tivesse o privilégio do monopólio, contratando competição injusta.”[26] [grifo nosso]

Portanto, não se pode ignorar que, ao admitir a contratação direta de entidades estatais que concorrem abertamente com empresas privadas, estar-se-ia permitindo que tal entidade obtivesse uma vantagem econômica indevida sobre seus concorrentes privados, beneficiando-se artificialmente da dispensa de licitação para atuar em ambiente concorrencial aberto. Tal situação gera distorções jurídicas e econômicas graves, razão pela qual merece uma abordagem mais rigorosa sob a perspectiva dos princípios constitucionais e republicanos envolvidos. É o que também pontua Justen Filho:

“Essa situação ofende aos princípios da livre concorrência, da isonomia e da República. Infringe a livre concorrência porque a entidade administrativa exercitaria a sua atividade econômica no mer-cado, beneficiando-se de um subsídio estatal oculto.

Isso contraria o princípio da isonomia porque impede o acesso de particulares às contratações administrativas, produzindo uma modalidade de restrição ao acesso de potenciais fornecedores à Administração Pública. Viola o princípio da República porque impõe à Administração Pública o desembolso de recursos superiores aos necessários para a obtenção dos bens e serviços de que necessita.”[27]

Esse entendimento é, inclusive, consolidado pela jurisprudência do TCU, como se observa nos julgados a seguir:

“As empresas públicas e sociedades de economia mista que se dedicam à exploração de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços sujeitam-se ao regime jurídico das empresas privadas (CF, 173), em consonância com os princípios constitucionais da livre concorrência e da isonomia, e não podem ser contratadas com dispensa de licitação fundamentada no art. 24, VIII, da Lei 8.666/1993.”.[28]

“As empresas públicas e sociedades de economia mista que se dedicam à exploração de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços não podem ser contratadas com dispensa de licitação fundamentada no art. 24, inciso VIII, da Lei 8.666/1993, em consonância com os princípios constitucionais da livre concorrência e da isonomia, uma vez que se sujeitam ao regime jurídico das empresas privadas (art. 173 da Constituição Federal).”[29].

“1.7. observe, em especial, o inciso VIII, do art. 24, da Lei n.º 8.666/93 e o § 2.º do art. 173 da Constitui-ção Federal, de forma a aplicar a dispensa de licitação apenas às entidades integrantes da Administração Pública que tenham como finalidade especí-fica a prestação de serviços públicos ou a prestação de serviços de apoio, bem como às empresas públicas e sociedades de economia mista que não desempenhem atividade econômica, sujeita à livre concorrência, pois estas não devem possuir privilégios que não sejam extensíveis às empresas da iniciativa privada.”.[30]

Em sentido contrário, o TCU possui entendimento pela possibilidade de contratação por dispensa de licitação de bancos públicos para a administração de folha de pagamento para servidores públicos. Vejamos:

“9.3.3 Terceira pergunta: ‘É viá-vel a contratação direta de banco oficial com amparo no art. 24, VIII, da Lei 8.666/1993?’ Resposta: 9.3.3.1. É viável a contratação direta de insti-tuição financeira oficial, com fundamento no artigo 24, inciso VIII, da Lei 8.666/1993, para a prestação de serviço, em caráter exclusivo, de pagamento de remuneração de servidores ativos, inativos e pensionistas e outros servi- ços similares, devendo, ainda, serem observadas as condições de validade do ato administrativo estabelecidas no artigo 26, caput, e parágrafo único, do referido diploma legal, bem como demonstrada a vantagem da contratação direta em relação à adoção do procedimento licitatório;”.[31]

É necessário, contudo, destacar que a contratação de tal objeto guarda especificidades que foram levadas em consideração para que o TCU fizesse esse distinguish[32] em relação à sua jurisprudência sobre o tema. Transcrevemos abaixo trechos do Voto do Ministro relator:

“Ao analisar a história das instituições financeiras Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, qualificadas como sociedade de economia mista e empresa pública, verifica-se que atuam, imemorialmente, como entidades devotadas à finalidade de dar suporte a atividades de interesse público e a programas governamentais, a par do desempenho de atividades econômicas. Essa antiquíssima atuação, na gestão da folha de pagamentos do setor público, advém, muito provavelmente, do primeiro momento em que ingressaram no mercado, como instituição principal de suporte à atividade pública.

[...]

Os exatos termos e a latitude das atividades bancárias, exercidas pelo Banco do Brasil e pela CEF, praticamente de forma monopolística, pelo menos até recentemente, quando começaram as folhas a serem licitadas, revelam a correção do procedimento até agora adotado. Quando essas entidades gerem as folhas de pagamentos dos órgãos estatais também exercitam nítida atividade de suporte à Administração Pública, de imemorial tradição, a perdurar sob a égide tanto desta Constituição, como das que lhe são anteriores.”.[33]

Além disso, há de se fazer uma análise temporal do julgado citado. Como narra o trecho transcrito, à época da sua prolação, nos idos de 2015, essas atividades eram “exercidas pelo Banco do Brasil e pela CEF, praticamente de forma monopolística, pelo menos até recentemente, quando começaram as folhas a serem licitadas”. Assim, não se deve olvidar que a interpretação dada à norma-regra (texto legal) é, também, a interpretação em um tempo específico, sob a conjuntura da época, de modo que, se verificado algum elemento importante que tenha se alterado, como é o caso, é necessário ter cautela ao transpor a interpretação desposada à época para os dias atuais.

Outro importante aspecto observado por Marçal Justen Filho é que admitir a contratação por dispensa de licitação de empresas que atuam em regime concorrencial possibilitaria a realização de subsídio cruzado. Pela robustez da argumentação, transcrevemos a seguir o trecho completo:

Essa solução destina-se, inclusive, a evitar o desequilíbrio na formação de preços das entidades estatais. Poderia verificar-se aquilo que a Economia denomina subsídio cruzado.

Assim se passaria quando a empresa estatal transferisse parte dos seus custos comuns e normais para o preço dos produtos ofertados à própria Administração Pública, o que lhe permitiria praticar preços mais reduzidos no mercado. Um exemplo prático permite compreender o problema.

Suponha-se que uma empresa estatal produza cem unidades de produtos, ao custo de cem unidades monetárias. Imagine-se que essa estatal comercialize, sem licitação, trinta unidades de produtos para a Administração Pública.

Como não existe licitação, não há necessidade de praticar o menor preço possível. Então, a entidade poderia adotar o preço de duas unidades monetárias para cada unidade de produto alienada para a Administração Pública.

Como decorrência, receberia o montante de sessenta unidades monetárias como contrapartida da alienação de trinta unidades de produtos.

Diante desse cenário a estatal poderia praticar preço reduzido no mercado, comercializando as restantes setenta unidades por preço unitário inferior a uma unidade. Isso permitiria à empresa estatal praticar preços mais reduzidos do que eventuais competidores privados.

Nesse caso, a contratação direta seria um expediente para assegurar a dominação do mercado por parte da estatal. O preço mais elevado pago pela Administração Pública configuraria uma forma de subsídio para a empresa estatal vender seus produtos no mercado por preço inferior ao custo. Em outras palavras, o preço inferior ao custo cobrado dos particulares seria compensado pelo preço superior exigido da Administração Pública”.[34]

Observe-se, ainda, que o legislador, quando deseja estatuir dispensa de licitação para contratação de estatal que atua em regime concorrencial, o faz expressamente. É o que se observa na previsão do art. 1º da Lei 13.463/2023, verbis:

Art. 1º A gestão dos recursos destinados aos pagamentos decorrentes de precatórios e de Requisições de Pequeno Valor (RPV) federais será realizada pelo Poder Judiciário, que contratará, com dispensa de licitação, instituições financeiras integrantes da administração pública federal para a operacionalização da gestão dos recursos.

Outro exemplo é a dispensa de licitação para a contratação direta do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), pela União, de serviços de tecnologia da informação considerados estratégicos, tema, inclusive, apreciado pelo STF:

“É constitucional o art. 2º da Lei nº 5.615/70, com redação dada pela Lei nº 12.249/2010, que dispensa a licitação a fim de permitir a contratação direta do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), pela União, para prestação de serviços de tecnologia da informação considerados estratégicos, assim especificados em atos de ministro de Estado, no âmbito do respectivo ministério. Há evidente interesse público a justificar que serviços de tecnologia da informa- ção a órgãos como a Secretaria do Tesouro Nacional e a Secretaria da Receita Fede- ral, integrantes da estrutura do Ministério da Economia, sejam prestados com exclu- sividade por empresa pública federal criada para esse fim, como é o caso do Serpro”.[35]

Por todo o exposto, entendemos que a hipótese de dispensa de licitação esculpida no art. 75, inciso IX, da Lei 14.133/2021, não alberga a contratação de empresa estatal que atue em regime concorrencial. As hipóteses de dispensa de licitação para tais contratações são autorizadas pelo legislador de forma específica, como nos casos citados.

Transposta para a contratação de plataformas privadas de contratações públicas pela hipótese de dispensa do art. 75, IX, a vedação de regime competitivo no mesmo objeto cumpre papel decisivo. Se a estatal comercializa a plataforma a terceiros em ambiente de mercado, a contratação direta colide com a isonomia e abre espaço a subsídio cruzado – o Poder Público suportando preços superiores para que a estatal pratique valores inferiores junto a particulares.

O ponto é adensado pelo ordenamento: sempre que o legislador quis permitir contratação direta de estatais atuando em competição, fê‑lo por leis específicas (v.g., contratações de instituições financeiras públicas para gestão de RPV/precatórios; serviços de TI estratégicos do Serpro), e não por analogia ao inciso IX. Portanto, para o caso da contratação das plataformas, isso significa que a atuação concorrencial da estatal inviabiliza o uso do art. 75, IX.

8 – Compatibilidade do preço com o praticado no mercado

Outro requisito apontado por Di Pietro é a exigência de compatibilidade do preço contratado com o praticado no mercado. Tal exigência ocorre porque a Administração Pública está atrelada ao princípio da economicidade. Nesse sentido, não pode o administrador público decidir por adquirir bens e serviços por valores que não guardem compatibilidade com aqueles praticados no mercado, pois haveria claro ato antieconômico, visto o objeto poderia ser adquirido dos particulares sem onerar desnecessariamente o erário com o sobrepreço.

A expressão “preço compatível com o praticado no mercado” não pode ser entendida como o menor preço do mercado. Se a Administração quiser obter o menor preço, ela deve, invariavelmente, realizar licitação, na qual poderá ocorrer a participação da entidade estatal. Na hipótese em análise, o vocábulo compatível deve ser entendido como não destoante, harmônico e razoável com os demais preços praticados no mercado.

Noutro giro, a incompatibilidade com o preço de mercado estaria caracterizada caso o preço praticado pelo ente estatal seja destoante e excessivamente superior àquele ofertado pelas empresas do setor privado. Nesses casos, deve a Administração realizar licitação, a fim de obter melhores preços. É nesse sentido que leciona Ronny Charles Lopes:

“O certame poderá até ser necessário, prejudicando a possibilidade de dispensa, caso o preço ofertado pela pessoa jurídica pertencente à Administração seja superior ao de mercado vistos no dispositivo legal.”.[36]

A nosso sentir, por economia processual, a pesquisa de preços exigida para a instrução do processo de contratação direta (art. 72, inciso II, da Lei 14.133/2021) já se presta a comprovar essa compatibilidade. Diante dessas considerações, conclui-se que os autos do processo de contratação com fundamento no art. 75, inciso IX, da Lei 14.133/2021, devem conter prova de que o preço do objeto a ser contratado é compatível – não necessariamente menor – com o praticado no mercado.

Nessa senda, a contratação de plataformas privadas de contratações públicas pela hipótese de dispensa do art. 75, IX somente se sustenta se o preço se revelar compatível com o praticado no mercado para soluções equivalentes. Compatível, note‑se, não significa “o menor”, mas harmônico e razoável face ao painel concorrencial. Em termos instrutórios, isso demanda ETP robusto e pesquisa metodologicamente idônea, com benchmark funcional (segurança e conformidade, integrações – PNCP inclusive –, SLAs/SLOs, escalabilidade, suporte, trilhas de auditoria, analytics).

9 – Publicização da contratação e privatização do lucro

Ponto pouco explorado acerca da contratação de entidades estatais é a possibilidade de favorecimento indevido de capital privado. Esse aspecto, que parece ser pouco percebido, guarda relação não “apenas” com a eficiência e isonomia, mas também com a probidade administrativa.

Fazendo rápida digressão conceitual, temos que a Administração Indireta é composta pelas seguintes entidades: autarquias, consórcios públicos, fundações públicas, empresas públicas e sociedade de economia mista. Enquanto as autarquias devem ser necessariamente de direito público, os consórcios públicos e as fundações públicas podem ser de direito público ou privado. Por seu turno, as empresas públicas e as sociedades de economia mista devem ser, necessariamente, de direito privado, tendo em vista a sua vocação para participar do mercado.

A empresa pública deve ter seu capital integralmente público, embora haja possibilidade de participação de entidades da Administração Indireta.[37]. Já a sociedade de economia mista “é pessoa jurídica de direito privado, em que há conjugação de capital público e privado, participação do Poder Público na gestão e organização sob forma de sociedade anônima, com as derrogações estabelecidas pelo direito público e pela própria lei das S.A. (Lei n° 6.404, de 15-12-76)”[38]. A sociedade de economia mista “executa atividades econômicas, algumas delas próprias da iniciativa privada (com sujeição ao art. 173 da Constituição) e outras assumidas pelo Estado como serviços públicos (com sujeição ao art. 175 da Constituição)”[39].

O Estado deve ser detentor da maioria do capital votante da sociedade de economia mista, ou seja, “a autorização legal e o domínio da maioria do capital votante retratam pressupostos indispensáveis à caracterização da sociedade de economia mista”[40]. Todavia, pode ocorrer de uma sociedade de economia mista, embora tenha a maioria do capital votante pertencente a entes públicos, tenha a maioria das suas ações preferenciais (sem direito a voto, mas com direito a dividendos) pertencentes ao capital privado. Nesse exemplo, embora o controle seja público, a maior parte dos lucros e dividendos seria destinada a particulares.

Em qualquer dos casos, é curial indagar se a dispensa de licitação não está, na verdade, servindo de manobra para que particulares obtenham lucro com uma contratação sem necessitar se submeter à regra constitucional da licitação. Em outras palavras, deve-se avaliar se a contratação não está servindo à velha conhecida fórmula da “privatização dos lucros e socialização dos prejuízos”, marca do patrimonialismo brasileiro. Essa máxima poderia ser adaptada para uma “publicização do privilégio” (da estatal, por pertencer à Administração Pública) e “privatização do lucro” (que vai para o particular que deveria, se quisesse, participar das licitações).

Esse aspecto já é avaliado para a concessão de outras vantagens e prerrogativas, como a impenhorabilidade dos bens, a submissão a precatório e a imunidade tributária. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, acompanhada da doutrina à época, costumava afirmar que a empresa pública, por ter capital totalmente público, teria acesso a tais prerrogativas, o que era negado à sociedade de economia mista, em virtude do seu regime híbrido.

Contudo, como citado anteriormente, a vida real, sobretudo no complexo mundo atual, é pródiga em casos concretos a desafiar classificações estanques. Partamos para algumas exemplificações para melhor compreensão do tema. Em um primeiro exemplo, é possível conceber que uma empresa pública tenha parte do seu capital pertencente a uma sociedade de economia mista (conforme autoriza o art. 3º, parágrafo único, da Lei 13.303/2016). A sociedade de economia mista, detentora das ações da empresa pública, pode ter a maioria – ou minoria, que seja – das ações preferenciais pertencentes a particulares. Assim, do mesmo modo, parte do lucro seria revertido ao capital privado.

Noutro giro, é possível que uma sociedade de economia mista tenha a totalidade de suas ações pertencentes a um ente público, que esta preste apenas serviços públicos, e em regime não concorrencial. Desse modo, resta pouco útil perquirir a classificação da estatal, se empresa pública ou sociedade de economia mista, para verificar se há reversão de lucros ao capital privado. É mais útil obedecer à famosa frase “follow the money[41] (Siga o dinheiro).

É nessa senda que caminha a jurisprudência hodierna do STF, como se verifica nos julgados a seguir:

“A imunidade tributária prevista na alínea a do art. 150, I, da Constituição Federal, alcança empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos essenciais e exclusivos, desde que não tenham intuito lucrativo, enquanto mantidos os requisitos. 4. Pedido procedente.”.[42]

“1. O transporte público coletivo de passageiros sobre trilhos é um serviço público essencial que não concorre com os demais modais de transporte coletivo, ao contrário, atua de forma complementar, no contexto de uma política pública de mobilidade urbana. 2. A mera menção, em plano de negócios editado por empresa estatal, da busca por um resultado operacional positivo não é suficiente para caracterizar o intuito lucrativo da prestação de serviço. 3. O Metrô-DF é sociedade de economia mista prestadora de serviço público essencial, atividade desenvolvida em regime de exclusividade (não concorrencial) e sem intuito lucrativo, pelo que se aplica o entendimento da CORTE que submete a satisfação de seus débitos ao regime de precatórios (art. 100 da CF). 4. Decisões judiciais que determinam o bloqueio, penhora ou liberação de receitas públicas, sob a disponibilidade financeira de entes da Administração Pública, para satisfação de créditos trabalhistas, violam o princípio da legalidade orçamentária (art. 167, VI, da CF), o preceito da separação funcional de poderes (art. 2º c/c art. 60, § 4º, III, da CF), o princípio da eficiência da Administração Pública (art. 37, caput, da CF) e o princípio da continuidade dos serviços públicos (art. 175, da CF). Precedentes. 5. Medida cautelar referendada.”.[43]

O tema foi decidido, inclusive, em tese de repercussão geral:

“Ementa: TRIBUTÁRIO. IPTU. IMUNIDADE RECÍPROCA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO. PARTICIPAÇÃO ACIONÁRIA DISPERSA E NEGOCIADA EM BOLSA DE VALORES. EXAME DA RELAÇÃO ENTRE OS SERVIÇOS PÚBLICOS PRESTADOS E O OBJETIVO DE DISTRIBUIÇÃO DE LUCROS A INVESTIDORES PÚBLICOS E PRIVADOS COMO ELEMENTO DETERMINANTE PARA APLICAÇÃO DA SALVAGUARDA CONSTITUCIONAL. SERVIÇO PÚBLICO DE SANEAMENTO BÁSICO SEM FINS LUCRATIVOS. CF/88, ARTS. 5º, II, XXXV, LIV E LV; 37, INCISOS XIX E XXI E § 6º; 93, IX; 150, VI; E 175, PARÁGRAFO ÚNICO. PRECEDENTES QUE NÃO SE ADEQUAM PERFEITAMENTE AO CASO CONCRETO. IMUNIDADE QUE NÃO DEVE SER RECONHECIDA. REDATOR PARA ACÓRDÃO (ART. 38, IV, B, DO RISTF). FIXAÇÃO DA TESE DE REPERCUSSÃO GERAL. 1. A matéria foi decidida por maioria pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que acompanhou o voto do I. Relator, Min. Joaquim Barbosa. Redação da proposta de tese de repercussão geral (art. 38, IV, b, do RISTF). 2. A imunidade tributária recíproca (art. 150, IV, “a”, da Constituição) não é aplicável às sociedades de economia mista cuja participação acionária é negociada em Bolsas de Valores, e que, inequivocamente, estão voltadas à remuneração do capital de seus controladores ou acionistas, unicamente em razão das atividades desempenhadas. 3. O Supremo Tribunal Federal nos autos do RE 253.472, Redator para o acórdão Min. Joaquim Barbosa, DJe 1º/2/2011, já decidiu, verbis: atividades de exploração econômica, destinadas primordialmente a aumentar o patrimônio do Estado ou de particulares, devem ser submetidas à tributação, por apresentarem-se como manifestações de riqueza e deixarem a salvo a autonomia política. 4. In casu, trata-se de sociedade de economia mista de capital aberto, autêntica S/A, cuja participação acionária é negociada em Bolsas de Valores (Bovespa e New York Stock Exchange, e.g.) e que, em agosto de 2011, estava dispersa entre o Estado de São Paulo (50,3%), investidores privados em mercado nacional (22,6% - Bovespa) e investidores privados em mercado internacional (27,1% - NYSE), ou seja, quase a metade do capital social pertence a investidores. A finalidade de abrir o capital da empresa foi justamente conseguir fontes sólidas de financiamento, advindas do mercado, o qual espera receber lucros como retorno deste investimento. 5. A peculiaridade afasta o caso concreto da jurisprudência da Suprema Corte que legitima o gozo da imunidade tributária. 6. Recurso Extraordinário improvido pela maioria do Supremo Tribunal Federal. 7. Proposta de tese de repercussão geral: Sociedade de economia mista, cuja participação acionária é negociada em Bolsas de Valores, e que, inequivocamente, está voltada à remuneração do capital de seus controladores ou acionistas, não está abrangida pela regra de imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição, unicamente em razão das atividades desempenhadas.”.[44]

Nessa esteira, é imperioso conferir ao privilégio estatuído pela hipótese de dispensa de licitação do art. 75, inciso IX, da Lei 14.133/2021, o mesmo tratamento dado pela jurisprudência aos demais privilégios: deve-se verificar, obrigatoriamente, se parte dos recursos estão sendo direcionados a particulares e, nesse caso, não será concedido privilégio. Tal conclusão é decorrência lógica também dos princípios republicano, da probidade administrativa, da isonomia, da moralidade, da impessoalidade, dentre vários outros.

Assim, não será possível contratar por dispensa de licitação com esteio nesse dispositivo empresa pública ou sociedade de economia mista que distribuam lucro direta ou indiretamente a particulares.

No plano da contratação de plataformas privadas de contratações públicas pela hipótese de dispensa do art. 75, IX, um escrutínio adicional recai sobre fluxos de resultado: não se pode converter um privilégio legal – concedido exclusivamente como forma de viabilizar a descentralização administrativa – em canal de transferência para capital privado. Se a modelagem societária da estatal conduz, direta ou indiretamente, à distribuição de lucros/dividendos a particulares, frustra‑se o fundamento público do privilégio e cai a justificativa da dispensa.

A jurisprudência e a doutrina convergem no sentido de negar a contratação direta com fundamento no inciso IX a empresas estatais cujas operações redundem em privatização de ganhos, por colidirem com a probidade, a isonomia e o princípio republicano. Em síntese: para a contratação dessas plataformas, além de a estatal integrar a Administração e ter finalidade específica, o arranjo econômico‑jurídico deve blindar a contratação contra a privatização do lucro, sob pena de descaracterização da hipótese de dispensa em análise.

10 – Impossibilidade de subcontratação

Outro aspecto importante a ser observado é a questão da subcontração. Em verdade, a dispensa do certame com fundamento no inciso IX do artigo 75 da Lei nº 14.133/2021 pressupõe, como requisito fundamental, que o contratado possua capacidade técnica e operacional suficiente para desempenhar diretamente o objeto contratado, em razão da finalidade específica de sua criação pelo ente político que o instituiu.

O intuito é garantir que a Administração Pública, ao optar pela contratação direta com um órgão ou entidade por ela criado, preserve tanto o domínio técnico quanto o controle operacional do objeto, em especial no contexto da descentralização administrativa. Portanto, admitir a subcontratação total ou substancial nessa modalidade de contratação direta equivaleria a descaracterizar o fundamento mesmo da norma, permitindo que a entidade pública contratada atue como mera intermediária ou repassadora de recursos, situação que violaria o princípio da eficiência, subverteria a lógica administrativa da hipótese excepcional de dispensa e comprometeria a legitimidade da contratação direta autorizada pela legislação.

É nesse sentido a jurisprudência do TCU, como se verifica no acórdão a seguir:

“A contratação direta com base no art. 24, inciso VIII, da Lei 8.666/1993 tem como pressuposto elementar a entidade contratada dispor de qualificação técnica e operacional para executar o objeto do contrato, sendo, portanto, irregular a subcontratação total dos serviços”. [45]

Além disso, seria anti-isonômico permitir a subcontratação da totalidade ou de parte considerável do objeto. Seria uma forma de entregá-lo a empresas privadas sem a realização de licitação sob os moldes da Lei 14.133/2021, ainda que esta tenha sido contratada sob a Lei 13.303/2016 (de regime mais ameno). Observar-se-ia, portanto, patente quebra de isonomia e manipulação da hipótese de dispensa de licitação, que deveria ser manifestação da descentralização administrativa, para burlar regras licitatórias.

Desse modo, outro requisito a ser observado quando da contratação por dispensa de licitação a que se refere o art. 75, inciso IX, da Lei 14.133/2021, é a necessária proibição de subcontratação do objeto.

Por fim, na contratação de plataformas privadas de contratações públicas pela hipótese de dispensa do art. 75, IX, exige‑se execução direta do objeto pela entidade contratada: transformar a estatal em intermediária (por subcontratação total ou substancial, “white‑label” ou repasse integral do desenvolvimento/operação) desvirtua a descentralização que legitima a dispensa e contorna a competição devida.

O TCU, em contexto análogo, já reputou irregular a subcontratação total na contratação direta, por faltar à entidade contratada a capacidade técnica e operacional própria para executar o objeto — requisito elementar nessa excepcionalidade. Para a plataforma, a cláusula de vedação de subcontratação do núcleo do objeto e a comprovação prévia da capacidade de desenvolvimento, sustentação, segurança e evolução interna são, pois, requisitos de validade do uso do art. 75, IX.

11 – Conclusão

A contratação de plataformas privadas de contratações públicas com fundamento na dispensa do art. 75, IX, da Lei 14.133/2021 é instituto excepcional e de interpretação estrita. Para que se sustente juridicamente, impõe‑se a demonstração cumulativa de requisitos materiais e formais que não admitem atenuações retóricas nem analogias ampliativas. Assim, a instrução processual deve comprovar, com documentos e motivação consistente, que todos os filtros aqui sintetizados estão presentes, sob pena de desfigurar a teleologia de descentralização interna que dá sentido à hipótese e de vulnerar princípios como isonomia, economicidade, impessoalidade e moralidade.

O primeiro eixo é subjetivo: quem contrata deve ser pessoa jurídica de direito público interno; quem é contratado deve ser órgão ou entidade que integre a Administração Pública. A consequência prática é direta: particulares – ainda que sem fins lucrativos – e delegatárias de serviços públicos estão excluídos dessa via excepcional. A presença do Estado em posição acionária minoritária não transmuta a natureza privada da sociedade, não havendo como converter empresa privada em “entidade da Administração” para os fins do inciso IX.

Segue‑se o núcleo teleológico da norma: a entidade contratada deve ter sido criada com o fim específico de fornecer exatamente os bens ou prestar os serviços que constituem o objeto do ajuste – no caso, desenvolver, operar e manter plataforma digital de contratações públicas. Não bastam finalidades amplas (“TI”, “soluções digitais”); a coincidência fina entre missão institucional e objeto deve emergir dos atos institucionais, do estatuto e de eventuais normas de organização, sob leitura restritiva. Onde houver apenas afinidade genérica, o requisito não se cumpre.

Essa finalidade específica possui ainda um vetor destinatário: a entidade deve ter sido concebida para servir à Administração Pública, e não prioritariamente ao mercado. O desenho admite soluções interna corporis: estruturas criadas para suporte e serviços de backoffice aos próprios órgãos e entidades do ente instituidor. Documentos de governança, políticas internas e o histórico de atuação precisam revelar que a clientela natural é o setor público. Doutrina e jurisprudência apontam que, quando a modelagem institucional é mista ou orientada a terceiros, o enquadramento no inciso deixa de se sustentar.

Há, ainda, o critério federativo: contratante e contratado devem pertencer ao mesmo ente federado. A hipótese foi talhada para permitir a descentralização administrativa interna – União com União; Estado com Estado; Município com Município –, preservando coerência, controle e accountability. A cooperação interfederativa é possível por outros instrumentos (convênios, acordos de cooperação, conforme o caso), mas não está contemplada nessa hipótese de dispensa de licitação. Exceções cabem apenas quando a própria lei assim dispuser (v.g., consórcio público de direito público devidamente estruturado), mantendo íntegro o sentido in house do dispositivo.

A vantajosidade econômica, por sua vez, reclama prova inequívoca de que o preço é compatível com o praticado no mercado para soluções equivalentes. Compatibilidade não é “menor preço”, mas harmonia e razoabilidade diante do painel concorrencial. Em se tratando de plataformas, o ETP deve contemplar benchmark funcional (segurança e conformidade; integrações, inclusive com o PNCP; SLAs/SLOs; escalabilidade; suporte; trilhas de auditoria; analytics), metodologia de pesquisa, fontes, tratamento de outliers e memorial de cálculo. Descolamentos relevantes entre o preço ofertado e o mercado obstam a celebração da dispensa deslocam a solução para o procedimento licitatório.

No plano concorrencial, a entidade contratada precisa atuar em regime não concorrencial no mesmo objeto. Se a plataforma é comercializada a terceiros em ambiente de mercado, o uso da dispensa compromete a isonomia e potencializa subsídio cruzado (a Administração pagando mais para viabilizar preços menores no mercado). Conforme demonstrado no estudo, sempre que o legislador quis autorizar contratações diretas com estatais em competição, fê‑lo por leis específicas. A aferição desse requisito exige exame documental de portfólio, políticas comerciais e público‑alvo, além de verificação de contratos com particulares.

Em reforço, quando a empresa estatal tem fluxos de resultados que remuneram capital privado – por distribuição direta ou indireta de lucros/dividendos –, a dispensa perde o seu fundamento republicano. O privilégio legal, concebido para viabilizar descentralização e ganho de especialização ao poder público, não pode operar como canal de transferência de renda pública a investidores privados, que se beneficiam de um mecanismo de organização interna da Administração Pública para lucrar sem se submeter ao processo licitação da Lei 14.133/2021. Assim, a instrução processual deve certificar de que não há na composição societária da contratada, ou dos sócios da contratada, a presença de particulares.

Por fim, a execução do objeto deve ocorrer diretamente pela entidade ou órgão contratado: é vedada a subcontratação total ou parcial do núcleo do objeto. Converter a estatal em mera intermediária – via “white‑label”, outsourcing estrutural ou repasse integral de desenvolvimento/operação – desvirtua a descentralização e contorna a competição que deveria ocorrer. O contrato deve conter cláusula expressa de proibição, e a entidade precisa demonstrar capacidade técnica e operacional própria (desenvolvimento, sustentação, segurança, evolução e integrações) sob responsabilidade direta.

Em síntese conclusiva: a dispensa do art. 75, IX somente se perfaz quando todos esses vetores – qualificação pública do contratado, finalidade específica quanto ao objeto, finalidade específica voltada à Administração, simetria federativa, preço compatível, ausência de competição no objeto, blindagem contra privatização do lucro e execução direta sem subcontratar – estão conjuntamente demonstrados. A falta de qualquer deles rompe a cadeia de legitimidade e desloca a Administração para outro instrumento jurídico adequado (licitação, convênio, acordo de cooperação, ou outra hipótese legal específica). Esse é o corolário normativo que resguarda juridicidade, probidade, isonomia e economicidade nas contratações públicas digitais.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Jandeson da Costa. Por que o credenciamento é uma hipótese de inexigibilidade de licitação. Disponível em: <https://virtugestaopublica.com.br/credenciamento-inexigibilidade>. Acesso em: 14 ago 2025.

__________. O interesse público constitucional numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.

BOSELLI, Felipe. Artigo 75. In.: FORTINI, Cristiana e outros. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Fórum: Belo Horizonte, 2. Ed., Vol. 2.

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__________. Supremo Tribunal Federal. MS 23294. AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 23-08-2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-191 DIVULG 02-09-2019 PUBLIC 03-09-2019.

__________. Supremo Tribunal Federal. ACO 3410, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22/04/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-084 DIVULG 02-05-2022 PUBLIC 03-05-2022.

__________. Supremo Tribunal Federal. ADPF 524. MC-Ref, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-277 DIVULG 20-11-2020 PUBLIC 23-11-2020.

__________. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2472/2017-TCU- Plenário.

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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 36. ed. Barueri-SP: Atlas, 2022.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 37. ed.

JACOBY FERNANDES, Ana Luiza. JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. JACOBY FERNANDES, Murilo. Contratação Direta sem Licitação na Nova Lei de Licitações: Lei nº 14.133/2021. Belo Horizonte: Fórum, 2021.

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WARBER BROS. Todos os homens do presidente. Direção de Alan J. Pakula. Produção de Walter Coblenz. Roteiro de William Goldman. Estados Unidos: Warner Bros., 1976. 1 filme (138 min.), son., color.


[1] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1507/2024-Plenário.

[2] Sobre o tema, ver: BARBOSA, Jandeson da Costa. Por que o credenciamento é uma hipótese de inexigibilidade de licitação. Disponível em: <https://virtugestaopublica.com.br/credenciamento-inexigibilidade>. Acesso em: 14 ago 2025.

[3] “O elemento teleológico busca dar à norma uma interpretação que tenha por finalidade o alcance de certos objetivos. Busca-se a finalidade última da norma, pois o “Direito não é um fim em si mesmo, e todas as formas devem ser instrumentais. Isso significa que o Direito existe para realizar determinados fins sociais, certos objetivos ligados à justiça, à segurança jurídica, à dignidade da pessoa humana e ao bem-estar social”.

Na Administração Pública, a utilização mais disseminada da interpretação teleológica já significaria enorme avanço. Segundo esse elemento interpretativo, “não se deve sacrificar os fins às formas”. Sem embargo, na maioria das vezes, obedecer às formas pode significar maior segurança jurídica ao administrador público. Já o atingimento dos fins, embora gere o “sentimento de dever cumprido”, não oferta necessariamente ao gestor público ganhos atrelados à sua produtividade, em razão das deficiências da política remuneratória do setor público. Porém, esse tema é assunto para outros trabalhos.”. In: BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022, p. 128.

[4] Não é necessário outro elemento para verificar a permissividade jurídica da hipótese de dispensa. Mas são necessários diversos outros elementos para se averiguar a legitimidade e economicidade da contratação, como por exemplo aferir se o preço está de acordo com o praticado no mercado.

[5] São diversos os julgados da Suprema Corte que sustentam esse entendimento, formando firme jurisprudência sobre o tema. Dentre eles, citamos: “O Supremo Tribunal Federal já manifestou, de forma reiterada, ser vedada aos demais entes federados a criação de hipóteses de dispensa de licitação diversas das previstas na legislação federal, julgando inconstitucionais leis municipais nesse sentido.” (RE 1419333 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 03-07-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 18-07-2023 PUBLIC 19-07-2023). Cita-se, ainda, os precedentes referenciados no referido julgado: ARE 1.334.522, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; ARE 1.261.243, Rel. Min. Gilmar Mendes; e RE 1.096.091, Rel. Min. Dias Toffoli, ARE 1.340.483-AgR, Rel. Min. Edson Fachin.

[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 37. ed., p. 395.

[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 37. ed., p. 395.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 23294. AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 23-08-2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-191 DIVULG 02-09-2019 PUBLIC 03-09-2019.

[9] BOSELLI, Felipe. Artigo 75. In.: FORTINI, Cristiana e outros. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Fórum: Belo Horizonte, 2. Ed., Vol. 2, p. 152.

[10] JACOBY FERNANDES, Ana Luiza. JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. JACOBY FERNANDES, Murilo. Contratação Direta sem Licitação na Nova Lei de Licitações: Lei nº 14.133/2021. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 283.

[11] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2472/2017-TCU- Plenário.

[12] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 1097.

[13] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 6931/2009-TCU-Primeira Câmara.

[14] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 6931/2009-TCU-Primeira Câmara.

[15] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1207/2023-TCU-Plenário.

[16] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1207/2023-TCU-Plenário.

[17] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1207/2023-TCU-Plenário.

[18] JACOBY FERNANDES, Ana Luiza. JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. JACOBY FERNANDES, Murilo. Contratação Direta sem Licitação na Nova Lei de Licitações: Lei nº 14.133/2021. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 279

[19] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 1097.

[20] BOSELLI, Felipe. Artigo 75. In.: FORTINI, Cristiana e outros. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Fórum: Belo Horizonte, 2. Ed., Vol. 2, p. 152.

[21] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 16.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2025, p. 498-499.

[22] JACOBY FERNANDES, Ana Luiza. JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. JACOBY FERNANDES, Murilo. Contratação Direta sem Licitação na Nova Lei de Licitações: Lei nº 14.133/2021. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 285-286.

[23] Ver nota nº 3 deste artigo.

[24] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 1097.

[25] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 1096.

[26] BOSELLI, Felipe. Artigo 75. In.: FORTINI, Cristiana e outros. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Fórum: Belo Horizonte, 2. Ed., Vol. 2, p. 152.

[27] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 1098.

[28] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 604/2018-TCU-Plenário.

[29] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 6931/2009-TCU-Primeira Câmara.

[30] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2203/2005-TCU-Primeira Câmara.

[31] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1940/2015-TCU-Plenário.

[32] Distinguish é uma técnica jurídica utilizada para demonstrar que determinado caso não se encaixa exatamente em um precedente existente, devido à existência de diferenças relevantes entre os fatos analisados, permitindo uma decisão distinta daquela anteriormente estabelecida.

[33] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1940/2015-TCU-Plenário.

[34] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 1097.

[35] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. ADI 4829/DF, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 20/3/2021 (Info 1010)

[36] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 16.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2025, p. 498-499.

[37] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 37. ed., p. 463.

[38] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 37. ed., p. 463.

[39] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 37. ed., p. 463.

[40] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 36. ed. Barueri-SP: Atlas, 2022, p. 414.

[41] Frase do filme: TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE. Direção de Alan J. Pakula. Produção de Walter Coblenz. Roteiro de William Goldman. Estados Unidos: Warner Bros., 1976. 1 filme (138 min.), son., color.

[42] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ACO 3410, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22/04/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-084 DIVULG 02-05-2022 PUBLIC 03-05-2022.

[43] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 524. MC-Ref, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-277 DIVULG 20-11-2020 PUBLIC 23-11-2020.

[44] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 600867, Relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Relator(a) p/ Acórdão: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-239 DIVULG 29-09-2020 PUBLIC 30-09-2020.

[45] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 448/2017-TCU-Plenário.