Obrigatoriedade do estudo técnico preliminar em processos de licitação [1]
O Estudo Técnico Preliminar (ETP), como regra geral obrigatório nos processos das contratações públicas segundo a Lei 14.133/2021, é uma ferramenta essencial para o planejamento eficiente das contratações públicas. Este artigo discute sua aplicação prática, destacando exceções previstas na lei e regulamentações, como a IN-Seges 58/2022, e como interpretar sistematicamente as situações que dispensam sua elaboração.
FASE DE PLANEJAMENTOLICITAÇÕES
Jandeson da Costa Barbosa [2]
10/9/202410 min read
É o art. 18 da NLLCA que disciplina os principais aspectos da instrução do processo de licitação. Vejamos:
Art. 18. A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos:
I - a descrição da necessidade da contratação fundamentada em estudo técnico preliminar que caracterize o interesse público envolvido; [...]
Da leitura acima, pode-se afirmar que, em regra, o Estudo Técnico Preliminar (ETP) é obrigatório para todos os processos de contratação que devam ser realizados por meio de procedimento licitatório. As exceções – quando não será necessário elaborar o ETP – ficarão por conta de expressa previsão legal (interpretação literal)[3], quando o conjunto de dispositivos da NLLCA deem a entender que não será necessário (interpretação sistemática)[4], ou, ainda, quando a situação contiver especificidades com as quais não fizer sentido elaborar o ETP, pois não se atingirá a finalidade pretendida pelo legislador (interpretação teleológica)[5]. Mas a regra é: o ETP deve ser elaborado em todos os processos de licitação. Regra essa que, como veremos, deve ser interpretada adequadamente.
Ronny Charles, ao comentar a IN-Seges 58/2022, defende que “esta obrigatoriedade generalizada do ETP ignora os custos transacionais da sua elaboração, ao menos como instrumento real de reflexão sobre as soluções existentes no mercado para atendimento da demanda administrativa”[6].
De fato, o ETP não foi até hoje devidamente compreendido em sua finalidade e nas vantagens que seu uso correto pode proporcionar, o que fez com que, muitas vezes, fosse utilizado como uma espécie de “pré-TR”. Essa conclusão é de fácil constatação quando se verifica que, em boa parte das contratações, o ETP dá origem a apenas um TR, e faz-se diversos processos para o mesmo objeto, cada um com o seu ETP, quando o adequado seria fazer um ETP dando origem a tantos TR’s quantos fossem necessários.
Imagine-se o exemplo em que a Administração Pública pretende realizar a compra e instalação de aparelhos de ar-condicionado. Em um processo adequadamente instruído – segundo o nosso exemplo – seria elaborado um ETP, que chegaria à conclusão, ante as nossas fictícias peculiaridades, de que se devesse fazer duas contratações distintas: uma para a compra dos equipamentos e outra para a instalação. Esse ETP daria origem a dois termos de referência (TR’s): um para a compra, e outro para a instalação.
Contudo, não raras as vezes, ocorre que o agente, de maneira intuitiva, chega à conclusão da melhor solução. No nosso exemplo, imagine-se que se chegou à igual conclusão de que o mesmo objeto deveria ser contratado separadamente. Geralmente, autuam-se dois processos, cada um com seu ETP (formal, pois a melhor solução já fora encontrada “intuitivamente”) e com seu TR. Isso quando o RCA/TCU[7] já dispõe acerca do uso correto do ETP desde 2024. E aqui se está a tratar apenas de contratações promovidas por meio de licitação. Vejamos:
Desse modo, com o devido respeito e reverência merecidos pelo prestigiado autor, entendemos que é acertada a exigência, via de regra, do ETP, até como forma de induzimento ao planejamento holístico das contratações públicas. O que ocorre é que, a nosso ver, a Administração utiliza o instrumento inadequado – licitação com toda a fase preparatória – para a contratação de bens e serviços simplórios, mas essa é discussão que extrapola o escopo da presente obra.[8]
Os regulamentos não podem criar exceções que sejam diametralmente opostas ao que dispõe a NLLCA, pois tal previsão seria contra legem (contrário à lei). De igual modo, leis estaduais e municipais não podem criar exceções que contrariem a norma geral da NLLCA. Contudo, tanto os regulamentos quanto as leis estaduais e municipais podem, a partir de uma interpretação sistemática ou teleológica da Nova Lei de Licitações, apontar situações em que o ETP não necessita ser elaborado, e tais previsões serão perfeitamente legais se consoantes ao que dispõe a Lei 14.133/2021. Nesse sentido:
Na produção dos atos especificados no art. 18, existe uma margem variável de autonomia, que poderá ser sensivelmente reduzida em vista da regulamentação adotada pelo ente federativo e das limitações decorrentes das práticas de governança adotadas.[9]
Um exemplo prático disso é a IN-Seges 58/2022, que no seu art. 14 disciplinou hipóteses em que a elaboração do ETP é facultativa (inciso I) ou mesmo dispensada (inciso II) a elaboração do ETP. E, no sentir deste autor, tais exceções foram corretamente previstas.
Assim, estados, municípios, seus órgãos ou entidades, e mesmo órgãos de outros Poderes da União podem repetir tais hipóteses em seus próprios regulamentos, ou mesmo criar outras, desde que juridicamente adequadas. E mais: no entendimento pessoal deste autor, é possível que, mesmo sem regulamento nesse sentido, tais entes públicos excepcionem a elaboração do ETP em tais situações recorrendo a uma interpretação sistemática ou teleológica da NLLCA e utilizando a IN-Seges 58/2022 como fundamento de soft law[10].
Vejamos cada uma das situações destacadas pela IN-Seges 58/2022, começando pelos casos em que a elaboração do ETP é dispensada:
Art. 75, inciso III, da NLLCA:
III - para contratação que mantenha todas as condições definidas em edital de licitação realizada há menos de 1 (um) ano, quando se verificar que naquela licitação:
a) não surgiram licitantes interessados ou não foram apresentadas propostas válidas;
b) as propostas apresentadas consignaram preços manifestamente superiores aos praticados no mercado ou incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes;
No caso da alínea “a”, estamos diante das hipóteses de licitação deserta ou fracassada. A alínea “b” acaba retratando também uma espécie de licitação fracassada, pois, apesar de não se ter verificado os aspectos de validade propriamente ditos das propostas, estas não poderão ser aceitas por terem preços manifestamente superiores. Em ambos os casos, já existe um processo com ETP pronto e que deve ser utilizado para a contratação direta, não necessitando obviamente refazê-lo.
Na verdade, se houver alterações nas condições definidas na licitação anterior, deverá ser realizada uma nova licitação. Nesse caso, a contratação não poderia ser realizada por dispensa, eis que haveria probabilidade de que, com tais alterações, a licitação anterior não fosse deserta ou fracassada. Mas isso é tema para outra obra. Prosseguindo:
“nos casos de prorrogações dos contratos de serviços e fornecimentos contínuos”
Tal previsão decorre de uma interpretação teleológica da NLLCA. Não faz sentido elaborar um ETP para uma contratação que já existe e que tal contrato contínuo apenas será prorrogado. Importante lembrar que, nessas prorrogações, a autoridade competente deverá atestar que as condições e os preços do contrato permanecem vantajosos para a Administração, conforme art. 107.
Caso não se verifique essa vantajosidade nem mesmo com uma negociação com o contratado, e persistindo a necessidade do contrato, deverá ser formalizado novo processo de contratação, com a consequente elaboração de novo ETP.
Passemos à análise dos casos em que, segundo a IN-Seges 58/2022, a elaboração do ETP é facultativa:
Art. 75, inciso I e II, da NLLCA:
I - para contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais), no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores;
II - para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), no caso de outros serviços e compras;
São as hipóteses de dispensa de licitação em razão do valor da contratação. Novamente, há uma interpretação sistemática e teleológica da NLLCA, segundo a qual não se coaduna com a finalidade do ETP e com os princípios das contratações públicas – sobretudo os da eficiência, eficácia, interesse público, razoabilidade e economicidade – exigir a confecção do ETP nessas contratações. A bem da verdade, para esse tipo de contratação já deveria ter sido adotado outro procedimento há tempos, como um marketplace público[11].
“É indispensável formular uma estimativa de custo-benefício quanto ao planejamento. É necessário identificar se os custos necessários à formulação de um planejamento adequado são inferiores aos benefícios por ele proporcionados”.[12]
Perceba-se que, no caso apontado, a elaboração do ETP é facultativa, ou seja, é possível a confecção ou não do documento a depender das peculiaridades da contratação. Importante notar que o agente público deverá verificar no caso concreto se a melhor medida é a elaboração ou não do ETP. Ou seja, não existe uma opção a priori mais correta. Não é mais diligente o agente que elabora o ETP em todos os casos de dispensa em razão do valor. Inclusive, atenta contra os princípios acima mencionados a decisão de elaborar o ETP quando este é facultativo e as circunstâncias do caso concreto não aconselharem.
Nesse desate, a Administração Pública deve encontrar um equilíbrio entre a exigência de planejamento e a realidade de determinadas contratações, sempre com base na interpretação sistemática e teleológica da Nova Lei de Licitações. O uso adequado do ETP, adaptado às especificidades de cada contratação, não só evita a repetição desnecessária de procedimentos, como também garante que os custos transacionais sejam adequadamente ponderados, resultando em uma gestão pública mais eficiente e transparente.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Jandeson da Costa. Fase de Planejamento da Contratação com Apoio da Inteligência Artificial. 2. ed. Natal: Editora Virtú. 2024.
_______________. Nova Lei de Licitações: Marketplace Público, o rei, Caetano e outras reflexões. Disponível em: <https://inovecapacitacao.com.br/nova-lei-de-licitacoes-marketplace-publico-o-rei-caetano-e-outras-reflexoes/>. Acesso em: 07 out 2023.
_______________. O interesse público constitucional: numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Risco e Controles nas Aquisições (RCA/TCU). Disponível em: <https://www.tcu.gov.br/arquivosrca/ManualOnLine.htm>. Acesso em: 02 out 2023.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 341.
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 14.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023.
NOTAS
[1] Este artigo é a transcrição, com adaptações, de trecho da seguinte obra: BARBOSA, Jandeson da Costa. Fase de Planejamento da Contratação com Apoio da Inteligência Artificial. 2. ed. Natal: Editora Virtú. 2024.
[2] Mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Público. Membro da Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União. Pioneiro na utilização da Inteligência Artificial em licitações e contratos. Membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas, do Ceub. Professor de Licitações e Contratos.
[3] No elemento gramatical ou literal, utiliza- se o sentido etimológico das palavras da norma-regra. O intérprete se limita a buscar o sentido vocabular do texto em estudo”. BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional: numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022, p. 126.
[4] “[...]a interpretação sistemática busca dar à norma um sentido a partir da sua leitura dentro de todo o conjunto normativo. Sendo a constituição a Lei Maior, o comando legal deve ter seu sentido sob o prisma primeiro do texto constitucional, e das demais normas do sistema jurídico”. In: BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional: numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022, p. 127.
[5] “O elemento teleológico busca dar à norma uma interpretação que tenha por finalidade o alcance de certos objetivos. Busca-se a finalidade última da norma, pois o ‘Direito não é um fim em si mesmo, e todas as formas devem ser instrumentais. Isso significa que o Direito existe para realizar determinados fins sociais, certos objetivos ligados à justiça, à segurança jurídica, à dignidade da pessoa humana e ao bem-estar social [Barroso, 2015]’”. In: BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional: numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022 p. 128.
[6] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 14.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023, p. 164.
[7] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Risco e Controles nas Aquisições (RCA/TCU). Disponível em: <https://www.tcu.gov.br/arquivosrca/ManualOnLine.htm>. Acesso em: 02 out 2023.
[8] Sobre o assunto, ver: BARBOSA, Jandeson da Costa. Nova Lei de Licitações: Marketplace Público, o rei, Caetano e outras reflexões. Disponível em: <https://inovecapacitacao.com.br/nova-lei-de-licitacoes-marketplace-publico-o-rei-caetano-e-outras-reflexoes/>. Acesso em: 07 out 2023.
[9] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 341.
[10] O termo soft law é comumente utilizado pelo direito internacional para se referir a um instrumento normativo desprovido de cogência e cuja inobservância não gera uma sanção legal. Assim, o poder do soft law não está na sua imposição jurídica, mas na solidez e eticidade dos seus argumentos. Este autor entende que as Instruções Normativas do Executivo federal podem ser utilizadas como parâmetro pelos entes que não estão a elas juridicamente submetidos, ante a sua solidez argumentativa e por ser a maior referência nacional de regulamentação sobre os temas que tratam. Quando não houver regulamento no ente federado acerca do ETP, é possível utilizar o regulamento federal por analogia, a fim de preencher a lacuna normativa.
[11] Sobre o marketplace público, ler: BARBOSA, Jandeson da Costa. Nova Lei de Licitações: Marketplace Público, o rei, Caetano e outras reflexões. Disponível em: <https://inovecapacitacao.com.br/nova-lei-de-licitacoes-marketplace-publico-o-rei-caetano-e-outras-reflexoes/>. Acesso em: 07 out 2023.
[12] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 338.