Inteligência Artificial na Administração Pública: desafios para contratar e possibilidades de pagamento
O artigo examina como a transformação digital está impactando o Direito Administrativo, especialmente no uso da Inteligência Artificial (IA) pela Administração Pública. Ele discute a necessidade de alinhar inovação, eficiência e boa governança, mostrando que a modernização prevista na Lei nº 14.133/2021 é mais que uma autorização — é uma exigência para que o Estado acompanhe as mudanças tecnológicas. O texto também analisa a viabilidade jurídica e operacional de contratar soluções de IA, apontando que, apesar de legalmente possível, o principal obstáculo está nas formas de pagamento, já que muitos fornecedores trabalham com cobrança eletrônica antecipada e não aceitam o modelo tradicional de empenho. Para superar esse problema, o artigo propõe alternativas como o uso do Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF) e a contratação de IA como funcionalidade adicional dentro de serviços já contratados, como internet ou nuvem.
Monique Simões Soares
12/4/202531 min read
Resumo
A transformação digital impacta o Direito Administrativo e a gestão estatal, exigindo compatibilização entre eficiência, economicidade e boa administração. A literatura jurídica recente destaca o avanço da Inteligência Artificial (IA) no setor público e a necessidade de governança, transparência e responsabilidade humana nos atos, sem afastar a adoção tecnológica. A inovação, prevista no artigo 11, inciso IV, da Lei nº 14.133/2021, não representa apenas uma permissão legal: é um chamado à modernidade, um mandato de transformação cultural, capaz de alinhar a gestão pública ao ritmo acelerado das mudanças tecnológicas e sociais. Uma das necessidades prementes da Administração Pública contemporânea é a adoção efetiva da IA como instrumento de apoio à decisão, planejamento e controle, rompendo com o paradigma burocrático do passado e inaugurando uma nova era administrativa. O artigo examina a viabilidade jurídica e operacional da forma de pagamento na contratação de soluções de IA pela Administração Pública, analisando as possibilidades de contratação e execução nos entes federativos. Conclui-se que, embora a contratação seja juridicamente possível, o maior entrave encontra-se no pagamento, pois fornecedores de IA, especialmente em modelos SaaS (Software como Serviço), exigem cobrança eletrônica antecipada e não aceitam empenho público. Para solucionar o entrave identificado, o artigo propõe alternativas que visam superar os desafios observados, destacando, entre elas: (a) uso do Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF) e (b) adoção da IA como funcionalidade acessória, sem custo adicional direto, em contratos de internet ou de nuvem com representante nacional.
Abstract
Digital transformation has profoundly impacted Administrative Law and public management, demanding compatibility between efficiency, cost-effectiveness, and good governance. Recent legal scholarship highlights the advance of Artificial Intelligence (AI) in the public sector and the need for transparency, accountability, and human responsibility in administrative acts, without rejecting technological adoption. Innovation, as provided in Article 11, item IV, of Law No. 14.133/2021, is not merely a legal permission but a call to modernity, a mandate for cultural transformation that aligns public management with the accelerated pace of technological and social change. One of the most pressing needs of contemporary Public Administration is the effective adoption of AI as a decision-support, planning, and control tool, breaking with the bureaucratic paradigm of the past and inaugurating a new administrative era. This paper examines the legal and operational feasibility of payment methods for contracting AI solutions within public administration, analyzing procurement and execution alternatives across federative entities. It concludes that, although procurement is legally possible, the main obstacle lies in payment processes, since AI suppliers, particularly under SaaS (Software as a Service) models, require advance electronic payment and do not accept traditional “empenho” procedures. Two pragmatic solutions are proposed: (a) use of the Federal Government Payment Card (CPGF); and (b) adoption of AI as an ancillary functionality, without additional cost, in internet or cloud service contracts with national representatives. The proposal harmonizes innovation, governance, and fiscal responsibility.
Palavras‑chave: Inteligência Artificial; Contratações Públicas; Inexigibilidade; Dispensa; Pagamento; Nuvem.
1 – Introdução
Vivemos um tempo em que a inovação já não é luxo e sim necessidade. A Administração Pública ainda vive em tempos antigos. Para mudar essa realidade, será preciso que todos os servidores passem a trabalhar com o auxílio da Inteligência Artificial. Em nossas casas, a Alexa acende a luz, o celular paga a conta, o aplicativo agenda a consulta e a geladeira até avisa quando o leite acabou. Tudo está conectado, integrado e sendo usado para facilitar a vida. Quando atravessamos o portão da repartição pública, parece que o tempo para. A sociedade contemporânea já se encontra amplamente integrada a tecnologias inteligentes, em que comandos de voz e automação simplificam atividades cotidianas, como “ok, Google”. No entanto, parte significativa da Administração Pública ainda opera sob paradigmas burocráticos tradicionais, baseados em processos físicos e fluxos manuais, como “ok, carimbo”. Esse contraste evidencia a defasagem tecnológica entre a experiência digital do cidadão e as práticas administrativas internas do Estado, reforçando a urgência de transformação digital e integração de sistemas.
Enquanto os órgãos da esfera federal, em sua maioria, já operam integralmente em ambiente eletrônico, os entes estaduais e municipais ainda apresentam diferentes graus de maturidade tecnológica. Essa heterogeneidade demonstra a necessidade de fortalecimento das políticas de transformação digital e de integração sistêmica, de modo que todos os entes federativos possam atuar de forma eficiente, transparente e alinhada às demandas da sociedade contemporânea. Assim como nossas casas se tornaram “smart”, a Administração também precisa ser digital, utilizando sistemas integrados, processos eletrônicos, dados e cultura tecnológica. A inovação é a ponte que liga o passado da burocracia ao futuro da inteligência pública. Essa diferença é o retrato do desafio da nova Administração: levar para o serviço público a mesma fluidez e integração que já fazem parte da vida do cidadão.
Nesse contexto, o princípio da eficiência, consagrado no art. 37 da Constituição Federal, impõe à Administração o dever de buscar resultados concretos e efetivos, superando o mero cumprimento formal de procedimentos. Como ensina Marçal Justen Filho (2014, p. 497), “a maior vantagem se apresenta quando a Administração Pública assume o dever de realizar a prestação menos onerosa e o particular a realizar a melhor e mais completa prestação”. Assim, a eficiência não se limita à economicidade, mas traduz o compromisso da gestão pública com a qualidade, a celeridade e a entrega de valor ao cidadão.
É importante destacar que a inovação constitui objetivo legal do processo licitatório. O inciso IV do artigo 11 da Lei nº 14.133/2021 determina que a licitação deve incentivar a inovação, o que legitima a adoção de modelos mais adequados a soluções de Inteligência Artificial e o exercício da discricionariedade pelo gestor na escolha da forma que melhor atende à necessidade pública, desde que devidamente motivada.
No mesmo sentido, a exigência de que os atos administrativos sejam adequadamente motivados, prevista no artigo 50 da Lei nº 9.784/1999, segundo a qual “os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos”, permite que as partes compreendam as razões das decisões, previne questionamentos futuros e reforça a confiança na Administração Pública, constituindo elemento essencial para a validade do ato e a legitimidade do processo decisório. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em seu livro Direito Administrativo, aborda a motivação de forma clara e didática:
“O princípio da motivação exige que a Administração Pública indique os fundamentos de fato e de direito de suas decisões. Ele está consagrado pela doutrina e pela jurisprudência, não havendo mais espaço para as velhas doutrinas que discutiam se a sua obrigatoriedade alcançava só os atos vinculados ou só os atos discricionários, ou se estava presente em ambas as categorias. A sua obrigatoriedade se justifica em qualquer tipo de ato, porque se trata de formalidade necessária para permitir o controle de legalidade dos atos administrativos. Na Constituição Federal, a exigência de motivação consta expressamente apenas para as decisões administrativas dos Tribunais e do Ministério Público (arts. 93 e 129, § 4o, com a redação dada pela Emenda Constitucional no 45/04), não havendo menção a ela no artigo 37, que trata da Administração Pública, provavelmente pelo fato de ela já ser amplamente reconhecida pela doutrina e jurisprudência. Na Constituição Paulista, o artigo 111 inclui expressamente a motivação entre os princípios da Administração Pública.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 38. ed. São Paulo: Forense, 2025.)
No contexto da modernização do Estado e, especificamente, da adoção de tecnologias emergentes como a IA, a motivação assume papel ainda mais relevante. Ao explicitar os fatos, fundamentos e dados que embasam a decisão pública, a motivação conecta o dever de transparência ao princípio da inovação, transformando a atuação administrativa em um processo racional, audível e orientado por evidências. Motivar adequadamente um ato, portanto, não significa apenas cumprir uma formalidade jurídica, mas integrar a lógica da governança pública contemporânea, pautada em decisões informadas, justificadas e sustentáveis, aptas a receberem tecnologias inteligentes e processos digitais. Assim, trazer modernidade à Administração Pública não é apenas uma questão de atualização tecnológica, mas uma exigência de governança, responsabilidade pública e alinhamento internacional.
O Brasil, ao aderir às boas práticas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), assumiu o compromisso de consolidar uma Administração Pública moderna, transparente e orientada por resultados. Essa adesão representa a incorporação de padrões internacionais de governança, integridade, eficiência e inovação, voltados ao fortalecimento da confiança social e ao aprimoramento da gestão pública.
Entre os principais referenciais da OCDE destacam-se a OECD Recommendation on Public Governance e o OECD Digital Government Policy Framework (DGPF), que estabelecem fundamentos para os governos digitais. Esses documentos defendem uma administração centrada no cidadão, sustentada por dados e evidências e articulada por sistemas integrados, capazes de reduzir redundâncias e promover decisões mais rápidas e transparentes. Nessa perspectiva, a governança deixa de ter caráter meramente fiscalizador e passa a expressar um modelo de gestão inteligente, colaborativo e orientado a resultados.
No plano nacional, tais diretrizes encontram correspondência na Lei nº 14.133/2021, que insere a inovação entre os objetivos da licitação (art. 11, IV), e no Decreto nº 9.203/2017, que institui a Política de Governança da Administração Pública Federal. Ambos reforçam a importância de decisões baseadas em evidências, da gestão de riscos e da promoção da integridade, em consonância com as recomendações da OCDE e com o uso ético e responsável de tecnologias emergentes, como a Inteligência Artificial (IA).
Sob essa ótica, a governança pública contemporânea configura-se como um sistema dinâmico de coordenação e aprendizado contínuo, que valoriza a transparência, a inovação e a responsabilidade institucional. A tecnologia, portanto, não é um fim em si mesma, mas um meio para aprimorar o serviço público, ampliar a confiança social e fortalecer a legitimidade do Estado.
A Inteligência Artificial consolidou-se como instrumento estratégico de governança e modernização administrativa. Seu uso permite ao Estado planejar com maior precisão, decidir com base em dados, reduzir riscos e entregar mais valor ao cidadão, concretizando os princípios de eficiência, integridade e inovação previstos na Lei nº 14.133/2021 e no Decreto nº 9.203/2017. Incorporar a IA à rotina administrativa, seja na elaboração de estudos técnicos, gestão de contratos, análise de riscos, pregões eletrônicos ou controle de gastos, significa levar a Administração Pública ao mesmo patamar de modernidade da sociedade digital, transformando a tecnologia em aliada da boa gestão.
O objetivo do presente artigo é analisar as contratações de soluções de Inteligência Artificial pela Administração Pública para uso dos servidores, comparando União, Estados e Municípios; mapear as formas de contratar por meio de licitação, inexigibilidade, dispensa e credenciamento, com suas vantagens, desvantagens, cuidados práticos e bases legais; e, em seguida, avaliar os instrumentos financeiros disponíveis para pagamento, conforme a Lei nº 4.320/1964 e os decretos de execução orçamentária, a fim de responder à seguinte problemática: como viabilizar o pagamento da contratação de soluções de Inteligência Artificial (IA) pela Administração Pública, diante das limitações do regime orçamentário e das peculiaridades do mercado tecnológico?
Este trabalho apresenta relevância crescente no contexto jurídico-administrativo brasileiro, uma vez que a utilização da Inteligência Artificial na Administração Pública ainda se encontra em fase inicial de regulamentação e aplicação prática. O tema ganha destaque crescente à medida que diversos órgãos e entidades públicas, em todas as esferas federativas, passam a demonstrar interesse em adotar ferramentas de IA para apoiar as contratações públicas e a instrução dos processos administrativos.
No entanto, persistem incertezas jurídicas e operacionais quanto às formas de contratação e, sobretudo, quanto aos mecanismos de pagamento compatíveis com o regime orçamentário-financeiro da Administração Pública. Diante dessa lacuna, o estudo contribui de forma pioneira ao propor soluções juridicamente seguras e operacionalmente viáveis, capazes de conciliar inovação, eficiência e responsabilidade fiscal, em consonância com os princípios previstos na Lei nº 14.133/2021 e nas diretrizes de governança pública.
2 – IA e o servidor público
Antes de adentrar o tema central, é necessário compreender o impacto que a inovação tecnológica vem causando na rotina dos servidores públicos. As mudanças trazidas pela Lei nº 14.133/2021 convergem com a modernização digital e refletem uma verdadeira revolução na forma de atuar da Administração. Esse processo afeta especialmente os servidores estaduais e municipais, que, em diversos segmentos, da elaboração das peças editalícias à execução contratual, precisam adaptar-se a novas dinâmicas, ferramentas e métodos de trabalho.
Nesse contexto, destaca-se a relação entre resistência e comprometimento organizacional. A inovação, embora inevitável e necessária, enfrenta obstáculos decorrentes de estruturas rígidas, culturas enraizadas, falta de alinhamento estratégico e, sobretudo, resistência dos atores internos. Para alguns, a mudança provoca medo, insegurança e a sensação de aumento da carga de trabalho. Sistemas novos e rotinas digitais geram incerteza, pois exigem leitura, aprendizado contínuo e abandono do “modo automático”. Em muitos casos, há receio de errar, parecer incompetente ou perder estabilidade e prestígio.
Essa resistência revela um desafio mais humano do que tecnológico. O medo do novo e a acomodação funcional exigem da Administração Pública políticas de capacitação digital, valorização do aprendizado e incentivo à inovação. Superar essas barreiras é condição indispensável para que o servidor enxergue a tecnologia não como ameaça, mas como aliada de sua inteligência e eficiência.
Superar esse quadro demanda a compreensão de que a Inteligência Artificial não substitui o servidor público, mas redefine seu papel. Como ensina Barbosa (2024, p. 24), “com a utilização da inteligência artificial (IA) na área de licitações e contratos, a necessidade de checagem dos dados referenciados tornou-se ainda mais premente. A IA pode fornecer dados rapidamente e em grande volume, mas cabe ao especialista verificar a precisão e a relevância dessas informações. Dados incorretos ou desatualizados podem levar a argumentos falhos e, consequentemente, a decisões inadequadas.” A citação reforça que o servidor continua sendo o responsável pela análise crítica e pela tomada de decisão, cabendo à IA apenas o papel de instrumento de apoio técnico.
Nessa mesma linha, Barbosa (2024, p. 30-31) defende que “o especialista em licitações e contratos administrativos é o servidor, não o ChatGPT”, enfatizando a necessidade de uso colaborativo das ferramentas de IA. A tecnologia deve servir como apoio qualificado, ampliando a capacidade analítica do gestor, e não como substituta de sua atuação técnica e jurídica. Assim, o servidor é reposicionado como agente estratégico da inovação, apto a utilizar ferramentas inteligentes para fortalecer a governança pública e aprimorar o serviço prestado ao cidadão.
Diante desse cenário, aderir à transformação digital deixou de ser uma escolha e tornou-se imperativo institucional. A modernização da Administração Pública representa mais que a simples atualização de métodos: simboliza a renovação da cultura organizacional do Estado, baseada em eficiência, transparência e governança orientada por dados. É nesse contexto que a Inteligência Artificial surge como ícone da nova era administrativa, uma era em que o conhecimento técnico, a sensibilidade humana e a inovação tecnológica caminham lado a lado na busca pela entrega de valor público. Cabe aos servidores públicos, protagonistas dessa transição, conduzir o processo de mudança com ética, responsabilidade e visão de futuro, garantindo que a inovação sirva sempre ao interesse coletivo.
Assim, a transformação digital não é um fim em si mesma, mas o instrumento que conecta o Estado ao tempo presente, tornando possível uma gestão pública mais inteligente, humana e alinhada às demandas da sociedade contemporânea.
3 - Aplicação prática da IA na Administração Pública
A incorporação dos princípios de governança e inovação à legislação brasileira encontra reflexo direto nas práticas de controle e accountability promovidas pelos órgãos de fiscalização, em especial pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Ao adotar o enfoque da governança pública, o TCU não apenas fiscaliza, mas também orienta a Administração quanto à necessidade de planejamento estratégico, gestão de riscos e uso eficiente dos recursos públicos. Essa atuação traduz na prática os valores de integridade, transparência e eficiência previstos na Lei nº 14.133/2021 e no Decreto nº 9.203/2017, demonstrando que o controle externo não se limita à verificação da legalidade, mas funciona como indutor de inovação e melhoria contínua da gestão pública. Nesse contexto, a atuação do TCU passa a representar um pilar de modernização institucional, estimulando os órgãos a adotarem práticas administrativas mais inteligentes, digitais e baseadas em evidências.
Desde 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) realiza investimentos contínuos em Inteligência Artificial (IA), com o objetivo de desenvolver ferramentas e tecnologias que fortaleçam a atuação do controle externo. As primeiras soluções implementadas baseiam-se na chamada IA clássica, composta por sistemas voltados à classificação e categorização de dados, capazes de tomar decisões a partir de regras predefinidas e dados de treinamento. Desde então, essas ferramentas têm contribuído significativamente para o aumento da produtividade dos servidores do TCU, especialmente em atividades de análise relacionadas a licitações, textos normativos, monitoramento de aquisições, orçamentos, disputas em pregões eletrônicos e avaliação de riscos.
Em 2023, o TCU torna-se um dos primeiros órgãos públicos do Brasil a disponibilizar tecnologia de IA integrada a diversos sistemas internos, de uso acessível a todos os servidores e colaboradores. O assistente virtual ChatTCU já atende mais de 1.400 usuários, consolidando-se como uma ferramenta de apoio institucional baseada em aprendizado de máquina e linguagem natural.
Dentre as principais soluções desenvolvidas pelo próprio Tribunal, destacam-se:
ALICE (Análise de Licitações e Editais): realiza a análise de editais e atas de pregão, identificando riscos em licitações;
SOFIA (Sistema de Orientação sobre Fatos e Indícios para o Auditor): auxilia na elaboração de instruções, relatórios e documentos;
ÁGATA (Aplicação Geradora de Análise Textual com Aprendizado): apoia a construção de bases de treinamento para algoritmos de classificação automática;
MÔNICA (Monitoramento Integrado para o Controle de Aquisições): consolida informações sobre aquisições públicas, licitações e contratações diretas;
SAO (Sistema de Análise de Orçamentos): avalia o risco em orçamentos de obras públicas;
ADELE (Análise de Disputa em Licitações Eletrônicas): apresenta a dinâmica de lances em pregões eletrônicos;
MARINA (Mapa de Riscos nas Aquisições): mensura o nível de risco das contratações do Poder Executivo Federal;
CARINA (Crawler e Analisador de Registros da Imprensa Nacional): rastreia e analisa publicações do Diário Oficial da União sobre aquisições governamentais;
ChatTCU: plataforma de IA integrada às bases de dados institucionais, que conecta o conhecimento organizacional ao mais avançado motor de IA do mercado, apoiando tarefas complexas sob supervisão direta dos servidores públicos.
Essas iniciativas demonstram o protagonismo do TCU na incorporação ética e estratégica da IA à gestão pública, servindo de referência para os demais órgãos de controle e reafirmando o papel do Tribunal como indutor de inovação, eficiência e governança digital na Administração Pública brasileira.
As experiências bem-sucedidas do TCU com o uso de ferramentas de Inteligência Artificial revelam um movimento institucional mais amplo, em que os órgãos de controle e gestão pública atuam de forma convergente na construção de um Estado digital, ético e eficiente. Nesse contexto, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) assume papel estratégico na orientação e padronização do uso responsável da IA na Administração Pública. Suas iniciativas buscam não apenas ampliar a adoção tecnológica, mas também estabelecer diretrizes de governança, segurança da informação e transparência algorítmica, garantindo que a inovação ocorra de forma ética e alinhada ao interesse público. Essa atuação complementa os avanços do TCU, fortalecendo uma cultura administrativa baseada em dados, evidências e automação inteligente.
O MGI publicou, em 13 de outubro de 2025, a matéria “Publicações sobre o uso da Inteligência Artificial no serviço público estão disponíveis” com objetivo de orientar pessoas sobre a utilização eficaz e responsável das ferramentas de IA. Disponibilizaram um Guia de Prompt para IA Generativa, no âmbito do programa AMPLIA (ampliação do uso responsável de IA no setor público) e a Cartilha de IA Generativa no Serviço Público, lançada em fevereiro de 2025. Deixo registrado que os links desses dois documentos estão nas referências bibliográficas desse artigo.
O marco regulatório da IA no Brasil é o Projeto de Lei 2338/2023 que dispõe sobre o uso, desenvolvimento, implementação e governança de sistemas de inteligência artificial no Brasil, com normas gerais de caráter nacional foi aprovado e encaminhado ao Plenário, e agora aguarda deliberação na Câmara. O Projeto de Lei, portanto, cria um arcabouço legal que impõe governança, responsabilidade e controle estatal sobre o uso da IA, o que torna imperativo que o setor público já se prepare, tanto tecnicamente quanto culturalmente.
4 – Início da utilização da Inteligência Artificial na Administração Pública
Nesse cenário de transformação tecnológica, é essencial que os servidores públicos se preparem para a nova realidade administrativa. Parte dos profissionais já utiliza ferramentas de Inteligência Artificial (IA) em atividades públicas, ainda que de forma tímida e, em muitos casos, com recursos próprios ou por meio de plataformas gratuitas.
Inicia-se, neste ponto, o estudo sobre a contratação de soluções de IA na Administração Pública, considerando suas peculiaridades jurídicas, tecnológicas e de governança. A seguir, apresenta-se um comparativo entre as esferas federal, estadual e municipal, abordando as formas de contratação: licitação, credenciamento, inexigibilidade e dispensa, com análise das possibilidades, vantagens, desvantagens, cuidados práticos e bases legais aplicáveis.
4.1 Formas de contratação
O primeiro eixo de análise, referente às formas de contratação, pode ser tratado de forma unificada, uma vez que a Lei nº 14.133/2021 possui aplicação nacional e estabelece parâmetros comuns a todos os entes federativos.
4.1.1 Licitação
A contratação de soluções de IA por meio de licitação constitui a regra geral, em observância ao art. 37, XXI, da Constituição Federal e à Lei nº 14.133/2021.
A escolha da modalidade entre concorrência, pregão ou diálogo competitivo deve observar a natureza e a complexidade do objeto, sempre amparada por planejamento técnico preciso que defina se o serviço possui caráter comum, técnico especializado ou inovador.
Contudo, há desafios de mercado relevantes: grande parte dos fornecedores de IA está sediada no exterior, o que reduz a competitividade e limita a participação em certames nacionais, devido a barreiras linguísticas, tributárias e operacionais.
Modalidades possíveis:
4.1.1.1 Pregão: indicado para soluções padronizadas e amplamente disponíveis no mercado, classificadas como objetos comuns, com critério de julgamento de menor preço;
4.1.1.2 Concorrência: adequada para objetos de natureza intelectual, complexa ou inovadora, com critérios de técnica e preço ou melhor técnica;
4.1.1.3 Diálogo competitivo: apesar de ser uma inovação trazida pela Lei nº 14.133/2021, não se mostra adequada para contratações de IA que não atendam às condições do art. 32, ou seja: (a) necessidade de inovação tecnológica ou técnica; (b) impossibilidade de satisfação da necessidade sem adaptação de soluções de mercado; e (c) impossibilidade de definição precisa das especificações técnicas pela Administração.
4.1.2 Credenciamento
O credenciamento somente é cabível nas hipóteses do art. 79 da Lei nº 14.133/2021, aplicável a contratações paralelas ou não excludentes, seleção a critério de terceiros e mercados fluidos, situações que não se enquadram no fornecimento de soluções únicas e específicas de Inteligência Artificial.
4.1.3 Inexigibilidade
A inexigibilidade de licitação é juridicamente cabível quando demonstrada a inviabilidade de competição, nos termos do art. 74 da Lei nº 14.133/2021, seja pela exclusividade do fornecedor, seja por se tratar de serviço técnico especializado de natureza singular, prestado por empresa ou profissional de notória especialização.
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) é pacífica ao exigir instrução processual robusta, com justificativa técnica detalhada e comprovação de preço de mercado, a fim de comprovar que a escolha do fornecedor não decorre de mera conveniência, mas de real inviabilidade de competição.
No caso específico das soluções de IA, a motivação deve explicitar comparativamente as funcionalidades, métricas de desempenho e integrações que tornam determinada solução indispensável ao atendimento da necessidade administrativa, evidenciando porque alternativas disponíveis não produzem o mesmo resultado. Dessa forma, evita-se o desvio de finalidade, atendendo ao dever de motivação qualificada previsto no art. 50 da Lei nº 9.784/1999 e no art. 20 da LINDB.
4.1.4 Dispensa
A dispensa de licitação, prevista no art. 75 da Lei nº 14.133/2021, é viável:
por valor, observando os limites atualizados pelo Decreto nº 12.343/2024;
ou por outras hipóteses, como pesquisa, desenvolvimento e inovação (P&D).
Devem ser observados os somatórios por unidade gestora e objeto, a publicação prévia para captar propostas adicionais e a preferência por pagamento via Cartão Corporativo ou SCP.
Para serviços continuados, a ON AGU nº 87/2024 orienta que o limite seja calculado com base no valor de um ano contratual.
4.2 Análise sobre a forma de contratar IA na Administração Pública
Após a análise das hipóteses legais de licitação, credenciamento, inexigibilidade e dispensa, constata-se que, embora a licitação seja a regra constitucional (art. 37, XXI, CF), sua aplicação às soluções de Inteligência Artificial enfrenta restrições práticas e de mercado que comprometem sua efetividade e competitividade.
Para viabilizar a contratação, é imprescindível a correta definição do objeto, a elaboração de critérios técnicos claros no Estudo Técnico Preliminar (ETP) e no Termo de Referência, o uso de matriz de riscos e plano de governança digital, fundamentando-se no art. 11, IV, da Lei nº 14.133/2021, que estabelece como objetivo do processo licitatório o incentivo à inovação.
A realidade mostra que a maioria dos fornecedores de IA tem sede no exterior, o que dificulta a participação em licitações nacionais, devido a barreiras tributárias, linguísticas e operacionais, além da baixa atratividade econômica de certames de pequeno porte, que raramente justificam a estrutura de uma licitação internacional (art. 52 da Lei nº 14.133/2021).
O credenciamento (art. 79) também se revela inadequado, pois se aplica a mercados fluidos e contratações não excludentes, o que não se ajusta a soluções únicas e específicas de IA.
Assim, as formas mais compatíveis e seguras de contratação são as hipóteses de inexigibilidade e dispensa, conforme o caso concreto:
Inexigibilidade de licitação (art. 74): cabível quando comprovada a inviabilidade de competição, em razão da exclusividade do fornecedor ou da natureza singular do serviço técnico especializado. Deve conter justificativa técnica comparativa e comprovação de preço de mercado, demonstrando a indispensabilidade da solução escolhida.
Dispensa de licitação por valor (art. 75, II): aplicável quando o valor global se enquadrar nos limites legais, especialmente em projetos-piloto, provas de conceito (POC) ou aquisições de pequena monta, observando-se somatórios anuais, aviso público e busca por propostas adicionais para garantir a vantajosidade.
Conclui-se, portanto, que a inexigibilidade e a dispensa por valor são as formas mais adequadas, eficientes e juridicamente seguras para contratação de soluções de IA, especialmente em um mercado com baixa concorrência e elevado grau de especialização técnica.
Ambas as hipóteses concretizam o art. 11, IV, da Lei nº 14.133/2021, que determina que o processo de contratação pública deve incentivar a inovação, harmonizando-se com os princípios da eficiência e da governança pública (art. 37 da CF e Decreto nº 9.203/2017).
5. Formas de pagamento da contratação de Inteligência Artificial
Superada a análise das hipóteses de contratação, passa-se agora à abordagem das formas de pagamento das soluções de Inteligência Artificial (IA) no setor público. Essa etapa é essencial para responder à problemática proposta, sendo tratada de forma diferenciada entre as esferas federal, estadual e municipal, considerando que a Lei nº 4.320/1964 estabelece diretrizes gerais, mas cada ente federativo possui autonomia financeira e orçamentária.
A forma de pagamento constitui um dos principais entraves práticos à implementação das contratações de IA na Administração Pública. Ainda que a contratação possa ocorrer por inexigibilidade ou dispensa, a execução financeira enfrenta limitações impostas pelo regime orçamentário da Lei nº 4.320/1964, especialmente pelos artigos 60 (necessidade de empenho prévio) e 63 (liquidação da despesa mediante comprovação do direito adquirido pelo credor).
As empresas fornecedoras de soluções de IA, em especial as que operam no modelo SaaS (Software as a Service), normalmente não trabalham com notas fiscais emitidas a posteriori mediante empenho, mas com pagamentos antecipados, por meio de cartão corporativo internacional, débito automático ou fatura eletrônica vinculada à assinatura. Tais modalidades de cobrança digital (por assinatura, consumo ou uso de API) não se enquadram no fluxo tradicional de empenho, liquidação e pagamento, previsto para a despesa pública.
O desafio central, portanto, é encontrar soluções legais e operacionais que viabilizem o pagamento de serviços digitais globais, sem violar o regime financeiro público e garantindo transparência, rastreabilidade e integridade do gasto.
5.1. Esfera Federal
A Administração Pública Federal é, atualmente, a única com instrumentos legais e tecnológicos aptos a viabilizar o pagamento direto de serviços de IA prestados por empresas estrangeiras ou plataformas digitais.
5.1.1. Instrumentos disponíveis
5.1.1.1. Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF) — instituído pela Portaria MF nº 95/2002 e atualmente regulamentado pela Portaria SEGES/ME nº 85/2021, o CPGF permite o pagamento de despesas eventuais, de pequeno vulto ou de pronto pagamento, incluindo serviços digitais ou assinaturas que não exijam emissão de nota fiscal nacional, desde que observados os limites e natureza da despesa.
Pode ser utilizado para pagamento de serviços SaaS, computação em nuvem e plataformas de IA, especialmente quando a contratação estiver amparada em dispensa por valor (art. 75, II, da Lei nº 14.133/2021).
O servidor designado como portador do cartão é responsável pela prestação de contas, pela vinculação da despesa ao processo administrativo e pela rastreabilidade no SIAFI e no PCASP, observando os limites de valor por transação e por portador definidos pelo órgão, com registro no SEI e/ou no PNCP.
5.1.1.2. Pagamentos com reembolso e conversão de moeda estrangeira — admitidos pelo Decreto nº 6.759/2009 e pela Portaria STN nº 548/2015, são possíveis em casos de fornecedores internacionais, desde que autorizados pelo Banco Central, com contrato formalizado e comprovação da contraprestação.
Nessas hipóteses, a invoice internacional pode substituir a nota fiscal nacional, desde que contenha identificação do fornecedor, valor, serviço prestado e forma de pagamento. É necessária tradução juramentada do contrato e comprovação de entrega do serviço (relatórios, logs, dashboards, certificados digitais etc.), além de eventual autorização da STN para a remessa de valores ao exterior.
5.1.2. Análise
Na esfera federal, o pagamento via CPGF representa o instrumento facilitador com a lógica de comercialização das plataformas de IA, permitindo execução imediata, segura e rastreável, desde que precedido de contratação válida por dispensa ou inexigibilidade, conforme o caso.
5.2. Esfera Estadual
Os Estados enfrentam maiores limitações operacionais, pois, em regra, não possuem cartões corporativos com natureza de pagamento orçamentário direto, utilizando-se de mecanismos de adiantamento (suprimento de fundos) previstos em normas locais, com base no art. 68 da Lei nº 4.320/1964 e no Decreto nº 93.872/1986.
5.2.1. Adiantamento ou suprimento de fundos
O adiantamento autoriza o servidor a receber valores em espécie ou transferência bancária para pagamentos imediatos de pequeno valor, de caráter eventual, urgente ou inadiável.
Exemplos: Decreto RJ nº 47.517/2021, Decreto MG nº 47.893/2020 e Decreto SP nº 64.667/2019. Assim, por sua natureza, o adiantamento não deve ser utilizado para contratações continuadas.
A prestação de contas é posterior, com comprovação documental e emissão de nota fiscal em nome do órgão. Contudo, esse modelo não comporta pagamento a empresas estrangeiras, nem despesas em moeda estrangeira, exigindo documento fiscal nacional válido.
Dessa forma, o pagamento direto a plataformas internacionais é inviável, salvo se houver empresa nacional representante autorizada, emitindo nota fiscal brasileira e recebendo em reais.
5.2.2. Análise
Na esfera estadual, a ausência de instrumentos eletrônicos de pagamento internacional inviabiliza a aquisição direta de plataformas estrangeiras de IA.
O pagamento somente é possível:
por adiantamento, para serviços nacionais de pequeno valor, ou
por meio de contrato com representante nacional, responsável pela emissão da nota fiscal e recolhimento dos tributos correspondentes.
5.3. Esfera Municipal
Nos municípios, o cenário é ainda mais restritivo. A maioria não dispõe de sistemas integrados de pagamento eletrônico, operando apenas com adiantamento de pequeno valor, conforme lei orgânica ou decreto local.
5.3.1. Adiantamento/Suprimento de fundos municipal
Segue os princípios do art. 68 da Lei nº 4.320/1964, mas com limites reduzidos, geralmente fixados entre R$ 3.000 e R$ 8.000 por servidor ou evento. Os pagamentos devem ocorrer em reais, mediante nota fiscal eletrônica nacional, sendo vedados os pagamentos internacionais.
As principais plataformas de IA (como ChatGPT, Copilot, Gemini, Midjourney, Anthropic, entre outras) não emitem nota fiscal nacional nem aceitam transferência bancária tradicional, o que torna o modelo municipal incompatível com o padrão global de cobrança digital.
5.3.2. Análise
Na esfera municipal, o modelo financeiro atual impossibilita o pagamento direto de plataformas internacionais de IA.
Como alternativas, o município pode:
editar normativo local, criando mecanismo específico de pagamento digital;
firmar convênio com órgão federal; ou
aderir a soluções centralizadas de governo digital (SERPRO, Dataprev, Gov.br), que atuem como intermediárias da contratação e do pagamento.
5.4. Conclusão sobre as formas de pagamento
A forma de pagamento constitui, no momento, o principal obstáculo à contratação de soluções de IA pela Administração Pública.
Enquanto a Administração Pública Federal dispõe de instrumentos financeiros e tecnológicos adequados, como o Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF) e mecanismos de pagamento internacional controlado, as esferas estaduais e municipais permanecem restritas a modelos tradicionais de empenho e adiantamento, incompatíveis com o formato digital e global das empresas desenvolvedoras de IA.
Essas empresas, em sua maioria, operam com cobrança eletrônica antecipada, em moeda estrangeira e via assinatura automatizada (SaaS), sem emissão de nota fiscal nacional ou possibilidade de pagamento a prazo.
Assim, somente a Administração Federal consegue hoje efetivar, dentro da legalidade orçamentária, o pagamento direto dessas soluções. Estados e municípios dependem de intermediação por empresa nacional, convênio com órgãos federais ou, futuramente, da modernização do regime financeiro público, de modo a incorporar meios digitais de pagamento integrados ao SIAFIC.
A evolução normativa e tecnológica nesse sentido será condição indispensável para que a inovação prevista no art. 11, IV, da Lei nº 14.133/2021 se concretize plenamente, permitindo que a Administração Pública do futuro se torne uma realidade presente.
6. Conclusão Final do Estudo
Após a análise jurídica, técnica e financeira das possibilidades de contratação e pagamento de soluções de Inteligência Artificial (IA) pela Administração Pública, nas esferas federal, estadual e municipal, conclui-se que o maior obstáculo não reside na forma de contratar, mas na forma de pagar.
Ainda que a inexigibilidade de licitação ou a dispensa por valor (art. 75, II, da Lei nº 14.133/2021) sejam juridicamente adequadas para o fornecimento de soluções de IA, a execução orçamentária e financeira permanece como o principal entrave prático. A razão é que a maior parte das empresas desenvolvedoras de IA, em especial as internacionais, não aceita pagamento via empenho, nota fiscal nacional ou fatura a prazo, exigindo, ao contrário, pagamento eletrônico antecipado, em moeda estrangeira, por cartão corporativo ou plataformas automatizadas de assinatura (SaaS).
Atualmente, somente a Administração Pública Federal dispõe de mecanismos para viabilizar esse tipo de pagamento, notadamente o Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF).
Os Estados e Municípios, ainda restritos ao uso de empenhos e adiantamentos, não possuem instrumentos compatíveis com o modelo de comercialização das plataformas internacionais de IA, o que inviabiliza, na prática, a execução direta de contratos dessa natureza.
Diante desse cenário, e considerando os limites legais e operacionais de cada ente federativo, a solução possível é a contratação indireta da ferramenta de IA, incorporando-a como funcionalidade acessória a contratos principais já existentes, sem custo adicional direto.
Essa alternativa harmoniza-se com os princípios da economicidade, eficiência, inovação e governança pública, previstos no art. 11, IV, da Lei nº 14.133/2021 e no Decreto nº 9.203/2017, além de eliminar o impasse quanto à forma de pagamento.
6.1. Primeira sugestão — Contratação de serviços de internet com disponibilização de IA
Uma alternativa prática consiste em agregar a ferramenta de Inteligência Artificial aos contratos de serviços de conectividade e internet corporativa. Nessa modalidade, o fornecedor de internet pode disponibilizar, sem custo adicional, assistentes virtuais, chatbots ou módulos de IA embarcados, integrados ao serviço principal.
A vantagem comercial para o fornecedor está no aumento do consumo de dados e tráfego de rede, o que justifica economicamente a oferta gratuita do recurso de IA. Juridicamente, a IA não é o objeto direto da contratação, mas sim um serviço acessório, previsto no Termo de Referência, sem acréscimo de preço, conforme admite a Lei nº 14.133/2021.
Essa solução é especialmente adequada a órgãos com infraestrutura de rede consolidada, como centros de dados, unidades policiais, escolas e repartições administrativas, que já mantêm contratos de conectividade.
Nesses casos, bastaria aditar ou ajustar o escopo contratual, inserindo a IA como funcionalidade complementar, desde que comprovada a vantajosidade e a compatibilidade técnica.
6.2. Segunda sugestão — Contratação de serviços de nuvem com disponibilização de IA
Outra opção eficiente e de maior alcance consiste em contratar serviços de armazenamento e processamento em nuvem (cloud computing) que já integrem, de forma nativa, recursos de IA.
Os principais provedores, Microsoft, Amazon, Google, Oracle, entre outros, oferecem modelos de IA integrados às suas plataformas, sem cobrança adicional isolada, mas atrelados ao uso da capacidade contratada de nuvem.
Nesse caso, a Administração contrata serviços comuns de tecnologia da informação, conforme o art. 6º, XXII, da Lei nº 14.133/2021. A IA é remunerada indiretamente pelo consumo da infraestrutura, permitindo que o pagamento continue sendo feito por meio tradicional (empenho, liquidação e pagamento), com emissão de nota fiscal nacional e recolhimento de tributos.
Assim, a Administração Pública acessa ferramentas inteligentes com plena segurança jurídica, sem necessidade de pagamento internacional, assegurando o cumprimento das normas de direito financeiro e a regularidade contábil do processo.
6.3. Conclusão consolidada
Retomando a problemática inicial que é como viabilizar o pagamento pela contratação de soluções de Inteligência Artificial (IA) pela Administração Pública, diante das limitações do regime orçamentário e das peculiaridades do mercado tecnológico, considerando os acórdãos do Tribunal de Contas da União, a ausência de regulamentação específica e a não aceitação de empenho pelas empresas de IA, demonstrado neste artigo, verifica-se que a hipótese apresentada neste estudo se confirma.
Constata-se que, embora a Lei nº 14.133/2021 represente um marco de modernização das contratações públicas e um avanço significativo rumo à inovação administrativa, ainda inexiste regulamentação específica que discipline o pagamento direto a fornecedores internacionais de soluções de IA, o que, na prática, inviabiliza a contratação direta dessas plataformas pelos órgãos e entidades públicas brasileiras.
Dessa forma, confirma-se a hipótese central de que a principal dificuldade para a adoção de soluções de Inteligência Artificial pela Administração Pública não reside na contratação em si, mas na execução financeira. O desafio não é contratar, mas definir uma forma juridicamente possível de pagar por serviços cujo modelo comercial global ainda não se ajusta às regras orçamentárias e financeiras do setor público brasileiro.
Enquanto não sobrevier regulamentação específica que trate do pagamento e do uso ético dessas ferramentas, as alternativas aqui propostas configuram o caminho mais prudente, inovador e juridicamente sólido. Permitem à Administração Pública adotar tecnologias emergentes com segurança jurídica, eficiência financeira e responsabilidade fiscal.
Importante destacar que as sugestões apresentadas decorrem desses Acórdãos do Tribunal de Contas da União (v.g., Acórdãos 157/2024-Plenário e 292/2025-Plenário), sobre contratações de serviços de computação em nuvem demandam rigor no planejamento, definição clara do objeto, análise de viabilidade de mercado e mecanismos de governança. Essas jurisprudências reforçam que, diante das limitações orçamentárias e de mercado para soluções autônomas de IA, a forma mais segura e eficiente de contratação consiste em incorporar a IA como funcionalidade acessória em contratos de serviços de internet ou de armazenamento em nuvem já existentes, alinhando-se aos princípios da inovação (art. 11, IV, da Lei nº 14.133/2021) e da governança pública. A proposta harmoniza inovação, governança e responsabilidade fiscal.
Importa reconhecer que a contratação de IA no setor público é um fenômeno emergente. É natural que, em breve, surjam decretos e normas complementares disciplinando suas formas de contratação, remuneração e uso ético. Quando isso ocorrer, a Administração estará mais preparada se já tiver estruturado processos de governança e planejamento capazes de integrar a IA de forma estratégica, segura e orientada ao interesse público.
Em síntese, a inovação tecnológica pode e deve coexistir com os princípios da legalidade, da eficiência e da governança pública, desde que seu uso seja responsável, devidamente fundamentado e alinhado aos valores republicanos. Convém enfatizar que a correta interpretação das normas jurídicas decorre da ponderação equilibrada dos princípios que norteiam a Administração Pública, e não da aplicação isolada de uma única regra.
O futuro, portanto, não é algo distante, ele já começou. Cabe à Administração Pública abrir as portas para a inovação, assumir o protagonismo da transformação digital e colocar a inteligência artificial a serviço do interesse público, da transparência e da boa gestão. Este é o passo decisivo para uma Administração mais moderna, estratégica e preparada para os desafios do século XXI.
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