ETP gourmet: ingredientes formais para um prato que não alimenta

Este ensaio analisa a construção do Estudo Técnico Preliminar (ETP), sob o enfoque da Lei nº 14.133/2021, com ênfase na necessidade de sua adequação à complexidade e às particularidades de cada demanda. Parte-se da argumentação que a aplicação automática e indiscriminada dos incisos constantes do parágrafo primeiro do artigo 18 da referida lei, especialmente para demandas simples, corriqueiras ou de baixo risco, compromete a finalidade do documento e gera esforços desproporcionais.

FASE DE PLANEJAMENTOLICITAÇÕES

Joacil Carlos Viana Bezerra

6/21/202514 min read

stainless steel fork on white ceramic plate
stainless steel fork on white ceramic plate

ETP gourmet: ingredientes formais para um prato que não alimenta

Joacil Carlos Viana Bezerra

Bacharel, mestre e doutor em Administração pela Universidade Federal da Paraíba. Servidor Público no cargo de Administrador na Coordenação Geral de Licitações do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI).

Antes do prato principal: temperando a reflexão sobre o ETP

A Lei nº 14.133/2021 confere protagonismo ao planejamento, alçando-o à condição de princípio da contratação pública (art. 5º). Além disso, reconhece a centralidade dessa etapa ao caracterizar a fase preparatória do processo licitatório como essencialmente planejada (art. 18) e ao detalhar os elementos que devem ser considerados nas compras públicas (art. 40). Considerando o planejamento como um conjunto articulado de atividades, este texto concentra-se na análise crítica e reflexiva da construção do Estudo Técnico Preliminar (ETP).

O ETP é um documento inerente à etapa de planejamento da contratação, destinado a apresentar de forma fundamentada a necessidade a ser atendida, caracterizada pelo interesse público, e indicar a solução mais adequada entre as alternativas disponíveis. Esse instrumento deve, ou deveria, permitir a análise da viabilidade técnica, econômica, social e ambiental da contratação (TCU, 2024). Vamos entender alguns aspectos sobre o documento.

Para Torres (2025, p. 175), o ETP constitui “um instrumento estratégico para reflexão sobre elementos exógenos e endógenos, fundamentais para uma boa definição do objeto da licitação e do mecanismo de seleção e contratação a ser adotado”. O autor, contudo, adverte que sua exigência indiscriminada em contratações cotidianas, com valor estimado da contratação baixo ou de complexidade reduzida, compromete os princípios da eficiência e da economicidade e tende a se tornar uma formalidade, esvaziando sua função crítica e induzindo sua banalização (Torres, 2025, p. 182).

Seguindo com a literatura especializada para o amadurecimento do entendimento sobre o ETP, Cox (2025, p. 132), reforça que trata-se de “um documento estruturado em que se consolida, de forma escrita, o produto do planejamento preliminar, escolhendo e justificando a solução que melhor atenda ao interesse público sob o prisma técnico, econômico e de sustentabilidade”. O autor propõe que, diante de soluções inéditas, inovadoras ou complexas, seja elaborado um ETP completo; enquanto para contratações rotineiras, defende a adoção de uma versão simplificada do documento, com vistas à melhoria contínua da performance da contratação (Cox, 2025, p. 147).

Na mesma linha, Niebuhr (2025, p. 494) é ainda mais enfático ao afirmar que “não faz sentido que para objetos simples, de contratação usual, se faça Estudo Técnico Preliminar”. Diante dessas contribuições, consolida-se a compreensão do ETP como um instrumento dinâmico e adaptável, cuja estrutura e profundidade devem variar conforme a complexidade da contratação. A crítica recorrente à rigidez dos modelos padronizados revela a necessidade de personalização e análise crítica caso a caso, sob pena de o ETP tornar-se um mero cumprimento formal.

Ao transformar o ETP em um documento repetitivo e desvinculado da análise concreta do problema, perde-se a oportunidade de aprimorar o processo decisório, identificar riscos, explorar alternativas e alinhar a contratação aos objetivos institucionais. Contudo, na prática, o ETP tem se transformado em um ritual meramente documental, a ponto de chegar a ser o último documento inserido no processo de contratação, quando deveria ser um dos primeiros (Acórdão nº 2037/2019 – TCU/Plenário).

Essa inversão de lógica revela uma tendência preocupante à padronização excessiva, marcada pela adoção de modelos genéricos que pouco dialogam com a realidade das contratações públicas. Buscando refletir sobre esse descompasso entre o conteúdo e a finalidade do ETP, este texto recorre a uma metáfora gastronômica, com o objetivo de provocar um debate crítico sobre o esvaziamento do ETP enquanto ferramenta de planejamento. A proposta é pensarmos em como devolver sabor - isto é, sentido, profundidade e efetividade - ao documento, resgatando sua função original de qualificar os processos de contratações.

Importa destacar que o objetivo deste ensaio não é ensinar a construir um ETP, mas provocar uma reflexão acerca de seu uso e finalidade. Nesse sentido, recorre-se à metáfora gastronômica para afirmar que não será a quantidade de ingredientes, isto é, de incisos preenchidos, que tornará o ETP um prato saboroso, mas sim a escolha dos elementos certos e necessários, adequados à natureza da demanda. Para quem busca orientações práticas sobre a elaboração, recomendo a leitura da obra Fase de planejamento da contratação com apoio da inteligência artificial, na qual o professor Jandeson apresenta o “jeito certo” de elaborar o ETP e discute como a inteligência artificial pode ser nossa aliada nesse processo.

É essa adequação entre elementos certos e necessários que se espera de um ETP verdadeiramente útil. Não esperamos, por exemplo, que um ETP voltado à aquisição de alimentos para merenda escolar deixe de considerar se as escolas possuem pessoas e equipamentos necessários para a preparação das refeições. Tampouco se justifica que um ETP para aquisição de materiais de limpeza exija o mesmo nível de detalhamento de um ETP voltado à contratação de serviços de manutenção predial. Cada situação demanda um tratamento proporcional à sua complexidade (Cox, 2025). No entanto, mesmo quando essa adequação parece ser observada, há um problema ainda mais profundo: a falta de substância.

Assim como um prato gourmet mal executado, muitos ETP até ostentam uma apresentação formalmente correta, mas carecem de substância, análise crítica e conexão com as reais necessidades da administração. Na cozinha disfuncional da burocracia, o que deveria ser um documento estratégico tem se tornado um cardápio repetitivo, baseado em modelos genéricos, cópias superficiais e diagnósticos frágeis.

A partir do exposto, é preciso refletir: estamos planejando com propósito ou apenas cumprindo formalidades? Acredito que ao avançarmos na busca pela resposta, estaremos, ainda, trazendo alguma contribuição para a inquietação apontada em Barbosa (2025, p.41) quando muitos argumentam, sobre a construção do ETP: “se nem os órgãos federais conseguem fazê-lo direito, como os entes com menor estruturação conseguirão?” A resposta talvez esteja menos na complexidade técnica e mais na forma como se compreende, ou se ignora, a construção o ETP.

A importância da equipe na elaboração do ETP: uma receita de sucesso

Elaborar um ETP não é, ou não deveria ser, tarefa para um único "chef". Assim como em uma cozinha profissional, onde cada cozinheiro desempenha uma função crucial para o sucesso do prato, o ETP também depende do talento e da colaboração de diversos profissionais. Cada especialista contribuindo com sua visão, experiência e conhecimento, assegurando que algumas dimensões da contratação (administrativas, estratégicas, técnicas, financeiras e operacionais), sejam devidamente consideradas. Não é razoável esperar que um único servidor, por mais dedicado que seja, consiga analisar, justificar e documentar todas essas dimensões de forma adequada. Em uma contratação de TI, por exemplo, a presença de um especialista em segurança da informação é indispensável para mapear os riscos, apontar as exigências técnicas e suas justificativas e propor soluções adequadas.

É claro que as estruturas administrativas são desiguais: há órgãos com setores dedicados ao planejamento das contratações e há aqueles em que um único servidor, sobrecarregado, responde por toda essa etapa. Mas, independentemente da realidade institucional, é preciso reconhecer que o ETP é, por natureza, uma construção multidisciplinar e coletiva. Quando construído sem a participação efetiva das áreas demandante, técnica e administrativa, o ETP corre o risco de se tornar sem sabor, sem contexto e, sobretudo, sem eficiência.

Ainda que o ideal seja a atuação articulada entre agentes com formações e expertises diversas, na ausência de uma equipe, espera-se, ao menos, que o "chef" solitário detenha domínio técnico-operacional sobre o objeto da contratação. E, não sendo este o caso, que tenha a iniciativa e a humildade de buscar o envolvimento das partes interessadas, promovendo uma construção colaborativa, consciente e capaz de produzir resultados positivos e alinhados ao interesse público.

Checklist não é receita: a arte de equilibrar os incisos

O conteúdo do ETP é aquele descrito no artigo 18, §1º, da Lei nº 14.133/2021, que elenca os 13 (treze) incisos a serem considerados. O §2º, do mesmo artigo, impõe uma obrigação inequívoca: a necessidade de contemplar, no mínimo, 5 (cinco) desses elementos, com justificativa para a não utilização dos demais. Em outras palavras, o ETP não é uma faculdade, mas uma imposição legal, ainda que sua forma possa ser simplificada, reduzida ou adaptada (Niebuhr, 2025). Exceções à elaboração só seriam possíveis com amparo legal específico, tema que será analisado em outro tópico.

O objetivo neste tópico é justamente tensionar essa prática da obrigatoriedade, a partir da distinção entre os elementos endógenos e exógenos propostos por Torres (2025), ou seja, fatores internos e externos que podem ser ou não relevantes na construção do documento. Essa reflexão é fundamental para que o ETP deixe de ser um mero checklist e passe a ser uma análise crítica, ajustada à realidade das múltiplas demandas.

No centro do problema, há uma confusão recorrente: o ETP deve partir da definição clara da necessidade (o que) precisa ser resolvido pela Administração, para só então construir a solução viável (o como). Porém, na prática, essa lógica, por vezes, se inverte. Essa inversão compromete não apenas a eficiência, mas a própria legitimidade do processo de contratação pública, cumpre-se o rito, mas se corrompe o propósito. Para ilustrar essa confusão, trago dois exemplos ilustrativos.

Primeiro um ETP que se proponha a responder à necessidade de ampliação da rede pública municipal de ensino, uma demanda estrutural, complexa, multifacetada e de alto impacto social. Um ETP verdadeiramente orientado à necessidade exigiria como ponto de partida, uma análise aprofundada da situação atual da educação no município, incluindo diagnóstico demográfico, migração de alunos da rede privada para a rede pública, capacidade instalada das escolas, mapeamento de vulnerabilidades territoriais, articulação com planos educacionais e urbanísticos, avaliação orçamentária, e, sobretudo, os impactos sociais e institucionais da não resolução do problema.

No entanto, o que se observa em alguns contextos é um documento que já parte da “solução” - por exemplo, a locação de contêineres escolares - sem que se tenha explorado alternativas viáveis, projetado riscos e impactos ou mesmo compreendido a fundo a complexidade do problema. O ETP, que deveria ser um instrumento de racionalidade e planejamento, torna-se apenas uma tentativa apressada de justificar tecnicamente uma decisão previamente tomada, como se sua função fosse validar o improviso.

Se, por um lado, a distorção na busca por soluções viáveis compromete contratações complexas, por outro, as disfunções burocráticas engessam demandas simples. Será que precisamos mesmo preencher os 5 (cinco) incisos obrigatórios e justificar os outros 8(oito) do § 1º art. 18 para comprar papel A4? Devemos agir como se estivéssemos tratando de uma solução inédita ou de alta complexidade, para uma contratação recorrente, de baixo valor e risco?

Esse formalismo exacerbado não apenas consome tempo e energia dos servidores, recursos escassos em muitas estruturas administrativas, como também cria a ilusão de planejamento. Em vez de concentrar esforços nas contratações que realmente exigem análise técnica robusta, a Administração se vê presa a uma lógica documental, desrespeitando o princípio da proporcionalidade e o bom senso. O que sobra é um prato insosso: bem apresentado, mas sem gosto, sem textura e sem substância.

Nesse contexto de utilização dos incisos, merece atenção especial o inciso XI, não obrigatório, que trata das contratações correlatas e interdependentes. Embora frequentemente ignorado, esse inciso lança luz sobre a complexidade real das contratações públicas, ao exigir que o planejamento considere os vínculos entre objetos distintos, mas funcionalmente conectados. As contratações correlatas são aquelas que guardam similaridade entre si, ainda que não dependam umas das outras para produzir efeitos; enquanto as interdependentes são aquelas cujo funcionamento ou eficácia está condicionado à execução conjunta (Cox, 2025). A aquisição de impressoras, por exemplo, pode demandar, de forma interligada, a contratação de cartuchos, toners e até de equipamentos de suporte energético (como estabilizadores ou nobreaks). Separar esses elementos, como se fossem isolados, pode comprometer a efetividade da solução.

Seguindo o raciocínio, trago mais um inciso não obrigatório: XII - descrição de possíveis impactos ambientais e respectivas medidas mitigadoras. Para ilustrar a importância desse inciso, consideremos, por exemplo, a contratação de reagentes químicos destinados à formação prática discente em uma universidade. Neste contexto, trata-se de uma contratação corriqueira, sim, mas que envolve riscos ambientais relevantes, exigindo atenção específica a aspectos como autorização para comercialização, formas de acondicionamento, transporte especializado, armazenagem segura, normas de manuseio e descarte correto de resíduos. Ignorar esses elementos em um ETP seria não apenas tecnicamente irresponsável, mas potencialmente danoso ao meio ambiente e à instituição.

Por outro lado, também é corriqueira, nas universidades, a contratação de serviços de capacitação de servidores. No entanto, aqui o cenário é completamente distinto. Trata-se de uma contratação com impacto ambiental praticamente nulo, especialmente quando realizada em formato virtual, e que deverá centrar suas análises em aspectos metodológicos, pedagógicos, técnicos e orçamentários.

Portanto, essa discussão evidencia um ponto crucial ao debate e, por vezes, negligenciado: não são os normativos que determinam os elementos essenciais do ETP, é a solução escolhida e seus impactos. A tentativa de encaixar todos os ETP em um mesmo rol de incisos, sem considerar a lógica da interdependência, empobrece o planejamento e desconecta o documento da realidade da contratação. Utilizar incisos apenas para “cumprir tabela” é esvaziar o conteúdo do ETP e tratá-lo como mais um formulário genérico.

É imprescindível que a Administração, com base na razoabilidade e na proporcionalidade, avalie e decida, considerando as características da contratação, quais incisos são pertinentes, viáveis e indispensáveis e quais podem ser, justificadamente, suprimidos (Niebuhr, 2025).

ETP como sobremesa: às vezes necessário, mas nem sempre indispensável

Como vimos até aqui, o ETP, quando bem utilizado, é uma ferramenta valiosa de planejamento. No entanto, sua aplicação deve ser equilibrada de acordo com a complexidade e o impacto da contratação. Assim como uma sobremesa não é parte obrigatória de toda refeição, o ETP também pode ser dispensado em algumas contratações, desde que haja amparo legal.

A Lei nº 14.133/2021 admite exceção à obrigatoriedade do ETP ao empregar a expressão “se for o caso” no inciso I do caput do artigo 72, que trata da contratação direta. Para o professor Jandeson o art. 72 não deve ser interpretado como se o ETP fosse opcional nas contratações diretas. O autor reforça que o agente público deve avaliar, caso a caso, se a elaboração do ETP é necessária e apropriada, e, em sendo, não poderá deixar de ser produzido (Barbosa, 2024, p.47).

A necessidade de elaboração do ETP pode ser avaliada com base nos pressupostos da proporcionalidade, na urgência do processo, na estimativa do valor da contratação, na complexidade da demanda e no grau de clareza sobre a solução pretendida. Logo, em contratações diretas que atendam a esses critérios e apresentem justificativa consistente, poderá ser legítima a opção pela não elaboração do ETP, sem que a medida seja confundida com comodidade ou atalho procedimental.

Nesse contexto de não elaboração do ETP, a Instrução Normativa SEGES nº 58/2022, em seu art. 14, esclarece que o documento é facultativo nas hipóteses dos incisos I, II, VII e VIII do art. 75, bem como no § 7º do art. 90 da Lei 14.133/2021. Enquanto a dispensa pela elaboração se aplica aos casos previstos no inciso III do art. 75 e às prorrogações contratuais de serviços ou fornecimentos contínuos. Embora a IN 58/2022 tenha caráter obrigatório apenas para a administração pública federal direta, autárquica e fundacional, seus critérios e procedimentos podem (e devem) servir de referência para estados, municípios e demais órgãos/entidades, garantindo coerência e eficiência na fase de planejamento.

Não obstante, os órgãos e entidades possuem a prerrogativa de regulamentar a elaboração do ETP por meio de normativos próprios, desde que não que contrariem a norma geral da Lei 14.133/2021 (Barbosa, 2024). Estes normativos podem definir, com base em critérios de oportunidade e conveniência administrativa, em quais situações o documento será obrigatório ou poderá ser dispensado. Seguindo a mesma lógica da Instrução Normativa SEGES nº 58/2022, alguns estados têm adotado regulamentações específicas. É o caso de São Paulo, com o Decreto n° 68.017/2023, e de Alagoas, com o Decreto nº 90.381/2023, que estabelecem diretrizes sobre a exigência do ETP.

Outros entes, como o estado de Pernambuco (Decreto nº 53.384/2022) e o governo da Paraíba (Instrução Normativa SEAD 3/2023), optaram por um caminho mais flexível, elencando apenas as situações em que a elaboração do ETP é obrigatória, o que, na prática, amplia o espaço para sua não elaboração. Em outro sentido, o Tribunal Regional Eleitoral da Bahia adotou um modelo mais rígido: pela Instrução Normativa nº 1/2023, o ETP é exigido tanto nas licitações quanto nas contratações diretas, admitindo-se sua dispensa apenas em situações excepcionais. Porém, o regulamento introduz uma distinção importante: o uso do ETP completo ou do ETP simplificado, conforme o grau de complexidade da contratação.

Essa dicotomia entre elaborar ou dispensar o ETP convida a uma reflexão inspirada na Teoria de Pareto, segundo a qual, em muitos sistemas, uma minoria das causas é responsável pela maioria dos efeitos. Será que o excesso de formalismo, representado por cerca de 80% do conteúdo meramente protocolar, não estaria obscurecendo os 20% de informações realmente relevantes, capazes de tornar o ETP mais enxuto, útil, focado na necessidade e no interesse público?

O desafio, portanto, não está apenas em decidir se o ETP deve ou não ser elaborado, mas em entender onde concentrar os esforços. Talvez devêssemos perseguir os 20% que realmente explicam o problema, sustentam a escolha da solução e geram impacto positivo na contratação. O restante - os 80% que pouco acrescentam - poderia, com razoabilidade, ser justificado, simplificado ou até dispensado, como fazemos com algumas sobremesas.

Sem espaço para ETP insosso: vamos dar sabor ao planejamento

A metáfora do ETP Gourmet é mais que uma figura de linguagem, é um convite urgente à reflexão. Cada contratação tem seu próprio paladar. Enquanto demandas complexas podem requerer um "prato" elaborado com múltiplos ingredientes e técnicas sofisticadas, demandas simples e corriqueiras se beneficiariam de uma "receita simples, mas nutritiva": um documento conciso, objetivo e focado nos elementos essenciais para uma contratação eficiente. Se o seu próximo ETP estiver parecendo um cardápio genérico, pare e pense na pergunta central deste ensaio: isso é planejar com propósito ou é apenas cumprir formalidades?

A aplicação indiscriminada de um modelo único de ETP, especialmente o excessivamente formal, pode levar à produção de "pratos insossos": cumpre a função básica de alimentar o processo, mas não encanta, não nutre decisões qualificadas e muito menos surpreende pela consistência. O que se espera do ETP é substância, textura e sabor. Um conteúdo que traduza a complexidade da demanda, justifique as escolhas e dialogue com as reais necessidades da Administração e da sociedade. Nem todo ETP precisa ser um banquete, mas também não pode ser fast food processual.

Reconhecer que o ETP pode - e em alguns casos deve - ser simplificado ou dispensado não fragiliza o processo. Pelo contrário: reafirma o compromisso com a razoabilidade, a eficiência e o bom senso administrativo. Simplificar não é banalizar e dispensar não é negligenciar. A construção do ETP precisa deixar de ser um fim em si e passar a ser um meio qualificado para decisões acertadas, transparentes e alinhadas ao interesse público.

Valorizar o conteúdo acima da forma, e a pertinência sobre a obrigatoriedade cega, é o que permitirá que o ETP cumpra seu papel com leveza e utilidade. Só assim deixaremos de servir pratos genéricos e passaremos a entregar resultados verdadeiramente nutritivos à sociedade. Porque ela não quer só comida. Ela quer comida, diversão e arte.

A propósito, este texto contou com a colaboração de um novo tipo de interlocutor: o ChatGPT. A máquina não escreveu por mim, mas ajudou na construção da metáfora - como um espelho que devolve perguntas e tensiona ideias. Se o resultado ficou indigesto ou saboroso, a culpa (ou o mérito) ainda é minha.

Referências

BARBOSA, Jandeson da Costa. Fase de planejamento da contratação com apoio da inteligência artificial. 2. ed. Natal: Editora Virtú, 2024.

COX, Carlos Henrique Harper. Planejamento das contratações públicas: conforme a Lei nº 14.133/2021. 3. ed., ver. e atual. São Paulo: Juspodivm, 2025.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2025. (Coleção Fórum Menezes Niebuhr).

TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 16. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Juspodivm, 2025.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Licitações e contratos: orientações e jurisprudência do TCU. 5. ed. Brasília: TCU, Secretaria-Geral da Presidência, 2024.